Crônica

De que lado tu tá?

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De que lado tu tá? Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

Esses dias, como de costume, acordei às 6 da manhã e enrolei na cama, o que geralmente acontece até 6h30. Só que meu porteiro eletrônico tocou às 6h20. Levando em conta que moro num lugar ermo, que isso nunca acontece, obviamente pensei em tragédia, algum vizinho vindo pedir ajuda, levantei imediatamente e quando atendi o homem deu bom dia, perguntou meu nome, respondi, e ele: “Dona Ana, aqui é da polícia federal, a senhora pode vir aqui um minutinho?” Fiquei atordoada, polícia federal às seis da manhã, que isso, será que sou da milícia? Disse que ia sim, só que tava acordando, precisava de um tempinho pra me vestir, ele disse que tudo bem – pelo menos, né, porque, no meu entendimento, não tinha a menor condição de eu ser presa por corrupção de pijama. Nisso meu companheiro já perguntou o que tinha acontecido, falei que era a PF, ele disse que devia ser alguma brincadeira, já se levantou e abriu a janela, terminei de colocar uma roupa qualquer e fui atrás, sim, na frente da minha casa estava esse policial e mais umas três viaturas, homens fortemente armados, mas ali do outro lado da rua.

Peguei só o fim da conversa dos dois, meu companheiro pedindo só um minuto pro cara, vira e me diz que teria que acompanhar porque a polícia estava efetuando uma prisão na casa da frente e precisava de testemunhas. Quê? Falou pro polícia que só ia botar uma roupa e já ia, achei adequado também, não acho correto participar de uma prisão com a PF trajando cuecão sem elástico, tinha coisa importante acontecendo ali.

Fui eu com a cara pra janela, e meu gato, que é tão fofoqueiro como eu, ficou ali no parapeito comigo. Não sabia se estávamos sujeitos a presenciar um tiroteio, mas realmente no momento importava mais era saber da fofoca. Começa o polícia de conversa comigo, ele me diz que meu companheiro vai atender a necessidade da polícia e que então eu não preciso sair, tudo bem. Eu já nervosa, pedi licença pro guarda, porque como nunca se sabe se é bom ou ruim deixar um policial no teu portão com fuzil na mão tomando chuva, fui apressar o meu aqui, e tava o princeso bem calmo se arrumando os cabelos, escovando dente, mandei ir duma vez, os ômi tavam tudo ali na chuva, e perguntei: “Por que tu aceitou ir?”, ele me respondeu: “Não aceitei, só fiz assim com a mão dizendo bahhh, meu amigo, mas ele balançou a cabeça e disse que não tem jeito, tem que ir sim, e ainda vai outro vizinho, ali da casa do lado”. 

É como diz meu cérebro em qualquer situação de merda: antes outra pessoa do que eu. Então ainda bem que a criatura aqui de casa ASSUMIU O PAPEL DE HOMEM. 

(Calma, que explico: como muita gente ainda divide as mulheres em feminista, que é a mulher de sovaco peludo que quer dirigir caminhão e odeia homem, versus mulher não feminista, que é aquela que aceita gentileza de homem mediante ser submissa e assumir todas as tarefas domésticas sozinhas, tal qual em 1915; pra eu viver em paz, costumo dizer que sou feminista até a página 2, só porque me facilita a vida e a maioria ainda é canalha nesse assunto, assim como decidi ser pra evitar a fadiga, daí o uso da expressão “papel de homem”). Era claro que meu companheiro não ia deixar que eu fosse num lugar efetuar uma prisão com um bando de homem fortemente armado, olha o tamanho dele e olha o meu, olha a situação toda, isso nem foi debatido em casa, era óbvio, mesmo que a primeira a ter sido chamada tenha sido eu, por ser a dona da casa. Então ele foi.

Nesse meio tempo, começou a chegar mais gente pra tal prisão, então nós tínhamos a PF tradicional, aquele uniforme preto; uns homens vestidos com roupas camufladas e aquelas coisas que tapam a cara e só deixam os olhos de fora, e outros com calça jeans e camiseta, sem máscara, sem nada, porém atrás da camiseta escrito “Divisão de homicídio e sequestro”.  Na frente da minha casa. Meu vizinho. 

Nunca tive contato com esse vizinho, sempre via entrando carro, saindo carro, claro, a gente vê movimentação da casa, mas nada que me chamasse a atenção. Isso foi o que disse pra esse mesmo PF que ainda tava ali no meu portão, fingindo que tava numa conversa informal comigo, mas tentando arrancar o máximo possível de informações sem me deixar mais nervosa. E eu ali dentro da minha cabeça: se digo tudo que falamos desse vizinho, vai parecer que sou uma dedo-duro, sei muita coisa e os comparsas do vizinho podem não gostar, vai saber; se não digo, o polícia pode achar que sou amiga do marginal, tenho alguma relação e não tô colaborando com ele.

Pois o que sempre falamos do vizinho foi: daonde que tira dinheiro pra morar numa casa imensa dessas, ter esse puta carro, a mulher, uma bagaceira, mas sempre toda arrumada, e ele todos os dias, o dia inteiro, mas inteiro mesmo, deitado na rede da sacada fumando maconha, só levanta pras visitas. Que tanta festa faz, que tanta gente frequenta nos fins de semana, boa coisa essa tranqueira não é. Mas isso eu só tô falando aqui.

Como vocês são curiosos, vou adiantar o que meu companheiro me narrou na volta: o cara era foragido do Amazonas, falaram “líder do PCC da Amazônia”, e vinha sendo procurado há bastante tempo, sendo monitorado aqui na minha rua há dois anos. Imagina quantas vezes eu saí de casa e tinha policial, investigação rolando e eu feito uma abobada não vendo nada, pegando a bicicleta pra ir pro mar. Imagina nesse dia, não sei quem são os vizinhos que se dão com o marginal, mas vendo que aqui de casa saiu gente pra testemunhar a prisão do cara, não tava tranquilo, não tava favorável.

O fato é que eu, agora como analista de operações da polícia, considerei essa ação de alto risco depois que meu companheiro voltou, te liga no procedimento: quando ele e o outro vizinho já estavam no pátio da casa, sem nenhuma proteção física, os policiais pediram que eles esperassem só mais um pouco porque iam entrar pra verificar mais uma vez a segurança; feito isso, explicaram que o papel de testemunha era dar a batida na casa junto, pra ver que a polícia não tinha plantado nada. Quando as testemunhas entraram, estava o meliante algemado, portas quebradas, a mãe do meliante ali, a esposa grávida chorando e o filho dos seus 8 anos. O único algemado era o patriarca da família. O resto tudo solto. Queria eu uma criança algemada? Não. Mas quem sabe o que uma esposa ou uma mãe pode fazer nessas horas? E seguiu a batida, cômodo por cômodo, todo mundo vendo bem a cara de todo mundo, e então encontraram uma arma. Lamentaram, isso era pouco pra despachar o cara pro Amazonas. Essa parte não entendi, vou ficar devendo.

Feito tudo, começa o preenchimento do relatório, um polícia com os documentos na mão, tudo junto, do marginal e das testemunhas, até que outro policial chama a atenção desse dos documentos, “Não! Esse é testemunha, não o alvo!”, aí acertaram os relatórios; quer dizer: meu companheiro tem o mesmo nome do meliante e estavam começando a preencher o formulário do marginal com os dados dele. Que beleza. Imagina ele fichado como líder do PCC e eu tendo que explicar aqui.

Mas o pior, o pior mesmo de tudo vem agora: quando o polícia que bateu aqui cedo tava de conversa supostamente fiada comigo via janela, eu ali com meu gato, ele acabou mencionando que tinha duas gatinhas, que gato é um bicho companheiro demais, eu concordava, até que ele fez a pergunta que GELOU A MINHA ALMA: “Qual é o nome dele?”. Eu tava ali já cuidando muito o que ia falar pra não me envolver em nada, e sendo péssima em improvisação, não consegui mentir, falei assim, bem assim, eu juro pra vocês: “Ai, meu deus… O nome dele é Favela, MAS NÃO FUI EU QUE COLOQUEI, JÁ VEIO COM ESSE NOME!”, e segui explicando que ele veio morar comigo porque quis, há cinco anos, e que a ex-dona dele tinha posto este nome e como era uma guria novinha e tinha mencionado que tava feliz de eu não ter trocado o nome, acabei deixando, mas eu não teria escolhido esse nome, só que agora já era. Tudo isso eu falei. Ele caiu na risada e só disse: “Não tem problema”. Sério.

Pra mim tinha problema sim. No momento que eu tô com um policial na minha porta fazendo a prisão de uma pessoa, sendo eu brasileira e sabendo como é a relação da polícia com a instituição favela, tinha problema sim, vai que dá gatilho no homem. Meu companheiro fazendo batida policial em líder do PCC sem estar nem mesmo com um colete à prova de balas era nada perto de eu ter que dizer que meu gato se chama Favela numa situação em que só me restava ser colaboradora da polícia, ou X9 de marginal, como preferir. Meu medo era que o nome do meu gato entregasse de que lado eu tava, porém injustamente, pois na verdade eu tava era do meu lado, que é o terceiro, da cidadã que tem medo da polícia e do bandido. Sim, quem não deve não teme, mas quando uma autoridade policial não te convida, mas te obriga a mexer com bandido, este que também não vai te convidar pra nada, mas te obrigar, só sobra o lado do pânico. Pela primeira vez considerei meu amado gato um rico dum olho do cu.

Depois disso, nunca mais chamei pelo nome pela janela na hora de dormir. Hoje, grito “Gatoooo, vem dormir”, como se fosse o nome oficial dele, Gato. E ele atende, que também não quer se meter em nada. Isso que somos apenas uma mulher branca e um gato tigradinho classe média, imagina se fôssemos pretos e favelados. Olha a que ponto chega nosso bem-estar social.


Ana Marson nasceu em 1978, em Porto Alegre. É mestre em literatura brasileira pela UFRGS, viveu em São Paulo de 2008 a 2016. Trabalha como revisora de textos e designer instrucional. Publicou A cobra da laranjeira – crônicas muito azedas (Consultor Editorial, 2017).

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