Crônica | José Falero

Dor de dono

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Dor de dono

Eu trabalhei um tempo no Nacional — nome curioso, inclusive, para um supermercado que na época já pertencia aos Estados Unidos (Walmart) e que, antes disso, tinha pertencido a Portugal (Sonae).

E foi lá — na famigerada loja 100, então localizada dentro do Shopping Rua da Praia — que eu conheci a expressão “dor de dono”. Dona Guilhermina, a gerente, explicava o conceito como ninguém, nas reuniões mensais que aconteciam no depósito:

— A gente nunca vai alcançar as nossas metas aqui na empresa sem dor de dono. Me digam: quando um amigo bagunceiro vai à casa de vocês e derrama uma xícara de café, indo embora sem limpar, por acaso vocês deixam o chão sujo? Não! Vocês limpam, porque, afinal de contas, a casa é de vocês. Vocês limpam, porque querem que a casa de vocês esteja limpa. Não importa quem sujou. Aqui, não pode ser diferente. Esta empresa é de vocês também, e vocês precisam se conscientizar disso. Vocês precisam ter dor de dono. Se um cliente derruba uma garrafa de vinho, vocês precisam ser os primeiros a querer ver o chão limpo o quanto antes.

As palestras da Dona Guilhermina pareciam surtir efeito. Os funcionários gostavam do conceito de dor de dono. Mais do que isso, cobravam a tal dor de dono uns dos outros. Mais ainda, efetivamente sentiam a tal dor de dono. Posso citar, como exemplo, o episódio do vendedor de guarda-chuva.

Uma chuva interminável tinha começado a cair em Porto Alegre. E, como sempre acontece em dias assim, surgiram vendedores de guarda-chuva em todos os cantos do Centro. Em frente ao Shopping Rua da Praia, se instalou um sujeito alto, magro, com cara de fome, e ficou oferecendo guarda-chuva para todo o mundo. Mas acho que não conseguiu vender nada, porque, em determinado momento do dia, entrou no shopping, se dirigiu até o supermercado, andou pelos corredores, olhou os preços de tudo e, por fim, resolveu ir embora sem comprar nada, mas levando uma bolacha recheada escondida na cintura.

Quem viu a tentativa de furto foi um faxineiro, que prontamente avisou um segurança. O segurança, por sua vez, abordou o vendedor de guarda-chuva e o conduziu até uma salinha escondidinha. Lá, o coitado apanhou até não querer mais. Todos os funcionários tinham direito a ir lá lhe dar uns tapas e ponta-pés. O convite era feito nos corredores do supermercado mesmo, com cochichos entusiasmados:

— Ei, tu já foi lá dar uma bifa no vendedor de guarda-chuva?

— Como assim?

— Um vendedor de guarda-chuva tentou roubar uma bolacha. O segurança levou ele pra salinha. Corre lá, dá uma bifa nele lá.

Dor de dono. Os funcionários se sentiam donos da bolacha que o vendedor de guarda-chuva tentou roubar.


José Carlos da Silva Junior nasceu e vive na Lomba do Pinheiro, periferia de Porto Alegre. Adotou o pseudônimo “José Falero” em homenagem à mãe, de quem herdou a veia artística, mas não o sobrenome. É escritor, autor de Vila Sapo (Venas Abiertas, 2019) e participante das antologias À margem da sanidade (J. Vellucy, 2018) e Ancestralidades: Escritores Negros (Venas Abiertas, 2019). Trabalha como auxiliar de gesseiro para não morrer de fome, e toca cavaquinho para não morrer de tristeza.

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