Crônica

E se a periferia fosse o centro? – Texto 1: Correnteza

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E se a periferia fosse o centro? – Texto 1: Correnteza

Organização de Marco Mello e de Daniele Gualtieri Rodrigues

Esta é uma série de crônicas, contos, cartas e poesias que a Parêntese apresenta a seus assinantes com exclusividade. A seleção conta com textos dos estudantes-escritores da escola Saint Hilaire, na Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre. A iniciativa partiu dos organizadores do livro E se a periferia fosse o centro? (EMEF Saint Hilaire, 124 pgs). A apresentação completa da obra pode ser conferida neste link.

Correnteza

Durante toda a minha vida, ouvi dizer que nós temos o dever de correr atrás dos nossos sonhos. Minha mãe, a Dona Ju, sempre me incentivou a batalhar, trabalhar e estudar, para, assim, conseguir realizar o meu maior sonho: publicar um livro e me tornar uma escritora famosa, conhecida internacionalmente.

Toda vez que falo sobre esse sonho para alguém, ouço a mesma resposta: isso é bobagem, guria! Vai arrumar um emprego digno e esquece essas maluquices!

Quando reparei que as mesmas pessoas que falavam para eu seguir o meu sonho também diziam que eu deveria desistir dele, parei de escutar comentários que não fossem positivos, porque percebi que eles não fazem o menor sentido e as pessoas nunca pensam antes de comentá-los.

Passei por um longo processo para aceitar isso, mas finalmente decidi que meu sonho é ser uma escritora reconhecida e eu vou continuar fazendo de tudo para torná-lo realidade, mesmo que as pessoas digam que não tenho futuro e que vou morrer de fome se seguir essa carreira.

Mesmo que eu tenha certeza do que quero fazer da vida e esteja completamente focada nisso, também sei que as coisas nunca são fáceis para nós, pessoas que não nascem em berços de ouro.

Assim que eu terminei de escrever o meu primeiro livro, me apressei para enviá-lo para todas as editoras que conhecia. Óbvio que o resultado foi um NÃO escrito em negrito e com letra maiúscula. Falaram que a minha história não era boa o suficiente, e que eu era jovem demais para entender sobre escrita. Mesmo assim, eu não desisti.

Faz aproximadamente cinco anos que a minha vida se resume à mesma coisa: trabalhar como gerente de caixa no supermercado, chegar em casa exausta, ajudar minha mãe com a limpeza do nosso lugarzinho e tentar tirar tempo de onde não tem para escrever mais e mais livros.

Isso estava começando a me desanimar. Contudo, a notícia que faria minhas esperanças se multiplicarem chegou há uma semana.

Eu havia enviado meu último rascunho para uma editora nova no mercado, chamada Seguinte, mesmo que, na minha cabeça, não existisse nenhuma possibilidade de retorno por parte da editora. Essa falta de confiança não existia antes, mas surgiu depois de tantos nãos que já recebi na minha curta e triste vida. Bem, vamos ao ponto: No final, eu percebi que estava muuuuuuuito enganada.

A editora me enviou um e-mail dizendo que gostaria de conversar comigo pessoalmente, para, talvez, fecharmos um contrato. Um. Contrato. Com uma editora de verdade! Nem preciso dizer o quão feliz, animada e ansiosa eu fiquei quando li o e-mail. A minha mãe e os meus vizinhos comprovam isso.

Mal posso esperar! Parece que uma linda e brilhante flor nasceu no jardim da minha vida, iluminando e trazendo beleza ao lugar que antes estava morto e apagado. Aquela florzinha desabrochava mais e mais a cada dia, me enchendo de esperança e felicidade. Talvez o meu sonho finalmente fosse realizado! Talvez tudo que fiz até agora não tenha sido em vão.

Bem, agora, depois de dias de ansiedade e espera, estou me arrumando para ir à reunião com a representante da editora. Minha amiga, Clara, me emprestou o seu melhor vestido, e eu peguei o meu mais novo par de sapatos. O tom branco dos tênis contrastava muito bem com o vestido azul claro, que, inesperadamente, coube direitinho no meu corpo.

Enquanto olho para o meu reflexo no espelho, um filme passa pela minha cabeça. De repente, me vejo de volta aos meus quinze anos, no Ensino Fundamental, quando eu lutava contra o meu próprio corpo como se ele fosse o meu maior inimigo.

Cresci escutando as pessoas ao meu redor falando sobre o meu corpo. Eu odiava o fato de que elas estavam mais preocupadas com quantos quilos eu engordei do que com seus filhos e o tipo de coisas que eles faziam fora de casa – que, eu garanto, não eram coisas que davam orgulho aos pais.

Óbvio que aguentar comentários sobre o meu peso – principalmente na adolescência – não me trouxe muitas coisas boas, muito menos autoestima. Fiz várias dietas malucas, tomei diversos remédios e tentei fazer de tudo para me encaixar nesse padrão que a sociedade criou, onde só corpos magros são atraentes e bonitos. Ah, mas também não podia ser magro demais, porque daí você seria uma “vara pau!”

Só aceitei o meu corpo quando me tornei adulta. Hoje, apesar de algumas inseguranças, consigo entender que todos os corpos são bonitos e eu não preciso vestir 36 para ser amada por alguém – principalmente por mim mesma.

Ver outras meninas sofrendo por causa do seu peso, do tipo de cabelo ou da cor de pele sempre me deixou estressada e furiosa. Isso me faz ter ainda mais vontade de gritar, por meio dos meus livros, que essas coisas são erradas e devem parar.

Eu respiro fundo, tranco a porta e saio de casa sem olhar para trás. 

Não sei como chego na estação de ônibus. Minha inquietação era tanta que nem consegui desfrutar do caminho, como normalmente faço. Quase solto um grito quando vejo o preço da tarifa do ônibus. Com o dinheiro que trouxe, só vou conseguir pagar a viagem de ida e volta, e isso significa que não terá almoço para mim hoje. Me arrependi amargamente de não ter comido a macarronada apimentada que Clara deixou para mim.

Enquanto o ônibus me leva até o centro de Porto Alegre, penso em como gosto de viver na Lomba do Pinheiro. Caso me perguntassem se eu viveria em outro lugar, com certeza responderia que não. Talvez fosse porque todos os meus parentes morassem lá, ou talvez fosse por causa das amizades incríveis que fiz com os moradores, mas, seja por um motivo ou outro, eu não trocaria a Lomba por nada.

Era uma alegria para mim sair na rua e encontrar as crianças brincando na rua, o seu Zé, da vendinha da esquina, lendo o jornal enquanto sua meia dúzia de gatos ronronam ao seu redor, o Morcego, um cara baixo e magrinho, que corria sua maratona diária, e até mesmo o seu Rômulo, que adorava cuidar da vida dos outros pela janela do seu quarto. 

Bem, apesar de todas as coisas boas, morar na Lomba também tem as suas desvantagens, claro.

A coisa que mais me estressa é ver o jeito que o bairro está, ver a negligência da Prefeitura com esse lugar tão bonito que é Lomba. As pracinhas, por exemplo, estão depredadas, abandonadas, cheias de mato e com brinquedos perigosos para quem quer que for lá. Isso me deixa triste e brava ao mesmo tempo. As obras que nunca foram finalizadas, os esgotos que pareciam cascatas correndo rua abaixo… Ah, são tantas coisas para reclamar.

Eu abaixo a cabeça assim que me sento no assento do ônibus e espero chegar até o Centro.

Quando avisto o grande e alto prédio, meu coração bateu mais forte. Estou tão perto…

As portas se abrem para mim. Entro no prédio e caminho até o elevador. Assim que estou dentro daquela grande caixa de metal, vejo que há outro homem ali. Ele fala no telefone com alguém enquanto anda para lá e para cá, me deixando espremida em um cantinho.

Sem querer, ouço um pedaço da conversa. 

– Papai, todos os meus amigos ficaram falando que eu já sou uma menina grande e não preciso que o senhor me traga até a escola! – berrou a voz fininha. – Da próxima vez, papai, deixa o carro na esquina e eu entro sozinha!

As portas do elevador abrem novamente. Saio de lá o mais rápido possível, pensando no que acabei de ouvir. Enquanto ela reclamava com o pai, dizendo que os amiguinhos tiraram sarro dela porque ele estacionou o carro perto da escola, eu deixava de almoçar porque não tinha dinheiro para comprar comida. Gastei tudo que tinha nas passagens de ônibus e passaria fome durante o resto do dia.

Eu caminho rapidamente até a sala da Márcia Mendes, a mulher que me respondeu por e-mail, ao mesmo tempo em que tento arrancar a voz daquela menininha da minha cabeça. 

Assim que encontro a plaquinha com o nome da Márcia, bato na porta e, em seguida, escuto um “entre” lá de dentro.

– Bom dia – digo, tentando controlar meu tom de voz para não revelar o meu estado de ansiedade.

– Bom dia, querida – responde ela.

Márcia tem a pele tão branca que parece papel. Seus cabelos são longos e loiros, e seus olhos são azuis como o céu em um dia de verão.

Ela continuou:

– Bem, senhorita Rafaela… olha, seu trabalho é muito bom, mas nós resolvemos fechar contrato com outra pessoa.

Ouço um barulho nas minhas costas. Quando me viro, vejo o homem do elevador parado ali. Ele veste um terno que parece ter custado dois meses do meu salário no supermercado. Sua pele é branca, seus olhos são azuis e ele sorri de um modo estranho, como se fosse o dono do mundo.

Finalmente, minha ficha caiu. Perdi novamente e, como sempre, para um homem. Minhas esperanças morrem de novo, e eu acho que elas vão demorar muito para voltar à vida.

Uma vez, minha avó me disse algo que nunca mais saiu da minha cabeça. Ela falou, entre tosses, pois estava doente naquela época: continue a nadar, minha querida. Continuar a nadar. Foi isso que eu fiz durante toda a minha vida, e era isso que eu continuaria fazendo, apesar de estar muito cansada.

Continuar nadando, mesmo que a correnteza não esteja ao meu favor. Essa tem sido a minha vida, afinal. Chegar em casa morta de cansaço e escrever até que meus olhos se rendessem à exaustão e não se mantivessem mais abertos. Os poucos momentos de lazer com minha família e os meus amigos era o que me dava força para continuar, como se fosse meu combustível.

A grande onda do mar me derrubava outra vez. Sempre era assim, nadar contra a correnteza, em um mar revolto, cheio de animais perigosos por perto.

Apesar de tudo, a esperança de chegar até aquela ilha distante que eu idealizava ainda não estava completamente morta. Eu continuaria a nadar, talvez para sempre, sim, mas continuaria. Foi isso que minha avó me ensinou.


Brenda Budtinger Viana é da turma 85 escola Saint Hilaire, na Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre.

Sobre os organizadores:

Daniele Gualtieri Rodrigues – Professora de Língua Portuguesa na EMEF Saint Hilaire. Doutoranda em Letras – Estudos de Literatura na UFRGS, onde pesquisa educação literária. Mestra em Filosofia – Estudos Culturais pela EACH-USP. Graduação em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP, 2003). 

Marco Mello – Professor de História e Filosofia na EMEF Saint Hilaire junto às turmas dos oitavos, nonos anos e Totalidades Finais na Educação de Jovens e Adultos (EJA). Mestre em Educação pela UFRGS. É um dos coordenadores do Coletivo de Professoras e Professores de História da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre (CPHIS) e do Projeto PoAncestral – Muito além de 250. 

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