Crônica

E se a periferia fosse o centro? – Texto 2: Por que a balança pesa tanto de um lado só?

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E se a periferia fosse o centro? – Texto 2: Por que a balança pesa tanto de um lado só?

Organização de Marco Mello e de Daniele Gualtieri Rodrigues

Esta é uma série de crônicas, contos, cartas e poesias que a Parêntese apresenta a seus assinantes com exclusividade. A seleção conta com textos dos estudantes-escritores da escola Saint Hilaire, na Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre. A iniciativa partiu dos organizadores do livro E se a periferia fosse o centro? (EMEF Saint Hilaire, 124 pgs). A apresentação completa da obra e a série que estamos publicando podem ser conferidas neste link.

Por que a balança pesa tanto de um lado só?

Acordar cedo todo dia. A oportunidade não bate fácil na minha porta. Se duvidar, ela me bate na rua, por conta da minha cor e sexualidade. Ela não é fácil para mim como é para o filhinho do papai, que mora na avenida mais cuidada pelo governo.

– Que tanto medo você tem do mundo lá fora, Lívia?

Foi a pergunta que eu mais escutei quando criança. Eu era tão pequena para escutar aqueles tiros lá fora, não entendia a balança desequilibrada que era o mundo lá fora. Eu não tinha culpa de sentir medo.

A escola às vezes não tinha comida, faltava professor e um pessoal se organizava para bater em alguns amigos meus. Eu, tentando ao máximo não me misturar, achava que o motivo era eles se vestirem bem, mesmo sendo pretos, mas era só por serem pretos e morarem na periferia mesmo

Voltando já tarde da noite todos os dias, vinte ligações da minha mãe, ela se preocupa muito, precisa pagar a faculdade, precisa colocar comida na mesa! Tenho sete irmãos e minha mãe não aguenta mais trabalhar por conta da saúde frágil.

Quer vir falar da realidade pesada? Comigo? Branco, hétero e que não mora na periferia, dando discurso na faculdade sobre dificuldades? Por que essa balança é tão pesada para um lado só? O que vou dizer ao meu irmão menor? Que sua irmã batalhou todos dias, mas faltou oportunidade? Ou dizer que pela minha cor e por onde moro, fico sempre com as sobras das coisas?

Eu já apanhei na rua por estar de mãos dadas com minha namorada. Meu irmão já foi preso por simplesmente ser preto, usando correntinha, chinelo e capuz. “Esse é malandro” na visão da polícia.

Vivo num lugar no qual se normalizou ouvir disparos toda a noite e cuidar para que meu irmão não acorde minha mãe, adormecida pelo cansaço. Dessa vez a faxina não trouxe o pão para a mesa, foi para pagar algumas das contas atrasadas, para o gás da cozinha. Quem trouxe o pão fui eu, com o livro embaixo do braço, torcendo para o bar do beco ainda estar aberto, torcendo para que não chova, porque senão complica passar pelo trecho para pegar o ônibus às 6 da manhã, alaga tudo. Todo dia é mais uma batalha e fica tudo acumulado. Cansativo! 

É assim morar na periferia, a todo momento pensando no dia de amanhã. Nunca dá para parar. Empurro o carrinho de bebê com meu irmão dentro enquanto tento ler um livro com mais de 350 páginas. E na rua, não posso mosquear. Os outros cinco estão na rua e não podemos tirar o olho de nada. Em menos de segundos é melhor botar todos dentro de casa. Daí a gente vê que não prestou atenção na leitura e aquelas páginas vão cair na prova, com certeza. Então começa tudo de novo…

O que acontecerá com a Lívia daqui a um ano ou dois? Ela sai da vila, melhora de vida e consegue dar uma casa com boas condições para os seis irmãos? Consegue passar na Faculdade e enfim sair da periferia? Ela consegue não se preocupar com os irmãos brincando lá fora, perto da boca? Ou ela morre com quatro tiros, três na cabeça e um no pescoço?

Uma fatalidade, diz o Jornal, causada por “mais uma bala perdida”.


Mariah Clara Dias Paz é aluna da turma 92 da escola Saint Hilaire, na Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre

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