Crônica

El Paro de 24 de janeiro em Buenos Aires: impressões 24 horas depois

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El Paro de 24 de janeiro em Buenos Aires: impressões 24 horas depois

Assim que concluí a escrita das impressões de ontem, tornei a sair às ruas. Agora com objetivos bem definidos. O primeiro deles, verificar a situação de ônibus e metrô. A Avenida Santa Fe foi o local escolhido para verificar a circulação de ônibus. Paguei um café, sentei em uma mesa estratégica, e me pus a observar por cerca de 30 minutos. Apenas 6 coletivos passaram, em uma avenida onde o trânsito deles é intenso tanto durante o dia quanto à noite. O intervalo de tempo foi das 20h30min até 21h. Saí da cafeteria porque a atendente veio avisar que, devido a El Paro, iriam fechar mais cedo. Não me atinei de perguntar a ela como voltaria para sua casa. Dali caminhei pelas avenidas Córdoba e Corrientes, onde também os coletivos eram muito raros. Na Avenida Santa Fe a linha de metrô está fechada para obras, por conta disso tive que ir mais adiante. Desci até duas estações do metrô na Corrientes, estavam sem trânsito de trens.

Feito isso, fui de volta ao coração de Palermo Soho. Em um bairro com tantos turistas e tantos estrangeiros, pensei que El Paro não houvesse feito nenhuma diferença. Me enganei um pouco. Pelas ruas, que já conheço um tanto, era visível um bom número de lojas fechadas, mais cedo do que costumam encerrar o expediente. Com os turistas me pareceu improdutivo falar. Fui conversar com os atendentes dos estabelecimentos que servem comida – bares de drinks, restaurantes, parrillas, pizzarias, cafeterias, hamburguerias, casas de massa, cervejarias, sorveterias, a grande maioria funcionando, a grande maioria com poucos clientes. A pergunta aos atendentes foi como fariam para voltar para suas casas, tendo em vista El Paro. Me dei conta que todos e todas estavam cientes da paralisação, embora estivessem ali trabalhando.

Para retornar as suas casas, três foram as alternativas apresentadas. Uma delas um tanto óbvia, me dei conta ao escutar a resposta: os ônibus iriam retornar aos horários normais meia noite, e eles encerram seu expediente entre uma e duas da madrugada, então não seriam atingidos pela interrupção do transporte. Chegaram ao trabalho antes da interrupção, iriam retornar para suas casas depois da volta à normalidade. Outros falaram que iriam de transporte de aplicativo, e outros indicaram colegas que possuem moto ou bicicleta. Até mesmo alguns dos muitos entregadores à domicílio que por ali circulam foram citados como alternativa para retornar as suas casas.  

Companhias aéreas já haviam informado cancelamento de voos uma semana atrás, essa conversa circulou nos jornais daqui, e escutei um comentário de turista brasileiro em uma cafeteria aqui no bairro. Outros setores informaram cancelamento de eventos. Isso me parece que tem relação com a preparação do El Paro, que iniciou ainda em dezembro. O período de preparação, e as notícias de adesão ao movimento que circulam pela imprensa, parecem já cumprir um papel importante na força da paralisação, mesmo antes dela acontecer.

Do que foi possível observar pela imprensa local entre ontem e hoje, e entre os depoimentos dos organizadores e o depoimento das lideranças do governo Milei, foi a nossa já conhecida guerra de narrativas. O governo diz que se tratou de um “paro” político, e que seus promotores foram “os setores privilegiados, que recebem benefícios”, justo aquilo que o governo quer cortar. O governo também afirmou que a paralisação trouxe “prejuízos para milhões de argentinos”, uma maneira indireta de reconhecer que ela foi abrangente. Mais ainda, foi dito que “quem quisesse parar poderia parar, desde que não atrapalhasse os demais”. Na mão contrária, as lideranças enfatizaram a grandeza do movimento, a enorme adesão, tanto na capital como em algumas outras cidades. Em matéria de números, ficamos entre as lideranças, que afirmam que, em todo país, foram cerca de 1,5 milhão de pessoas, metade das quais em Buenos Aires, e o governo, que identifica a paralisação de apenas 40 mil pessoas. Tendo em conta que a população total da Argentina é de 47 milhões de habitantes, fica um tanto difícil acreditar que apenas 40 mil pessoas paralisando as atividades teriam causado danos a milhões de argentinos, e tal estardalhaço na imprensa.

Quanto aos grandes jornais, não tenho expertise suficiente para uma análise aprofundada. O que posso reproduzir é que, consultando as mídias do La Nacion, tradicional veículo da grande imprensa argentina, o protesto “não foi contundente”, e ali até mesmo se reproduziu a noção de “estrondoso fracasso” dita pelo governo. Já o Página 12 é um jornal que divulgou em suas matérias a versão do grande sucesso do movimento, destacando sua abrangência e sua organização. Ainda não me foi possível descobrir aqui, pelo pouco tempo, mídias e analistas menos colados aos dois lados em embate. Penso que a força da manifestação será testada quando os decretos do governo forem à votação, pelo comportamento dos deputados e deputadas. Mas vale dizer que eles iriam à votação esta semana, e isso já ficou para a próxima semana.

As centrais sindicais, em sintonia com outras organizações, afirmam que nenhuma crise pode ser tomada como oportunidade para retirada de direitos fundamentais dos argentinos. O governo insiste em um discurso fatalista, de crise abismal, de batalha entre a ruína total e o sacrifício, e então se sente autorizado para pedir sacrifícios. Sacrifícios que, em princípio, seriam para todos, mas é fácil verificar que episódios como a desvalorização brutal da moeda de um dia para o outro beneficiam alguns setores, e prejudicam outros. Não são “um remédio amargo para todos”, como insiste o governo. Para um brasileiro, acostumado a comícios onde falam muitas lideranças, e muito diversas entre si, o fato de que ontem as falas se resumiram a três ou quatro atores é algo um tanto estranho.

Uma vitória importante da manifestação de ontem, em sintonia com o que foi feito em dezembro, foi derrubar na prática as diretrizes do governo que chegaram ao ponto de indicar que se poderia apenas circular nas calçadas, e não nas ruas. Igualmente deitaram por terra a diretriz que toma qualquer reunião com mais de três pessoas no espaço público como uma manifestação, devendo ser informada com 48 horas de antecedência ao Ministério da Seguridade. Tudo se faz em nome de “equilibrar as contas fiscais”, essa frase é repetida de modo sistemático pelas lideranças governistas. Os jornais de hoje dedicaram bastante espaço ao tema dos aposentados. Pelo que me foi possível entender, o valor a ser recebido em fevereiro pela maioria dos aposentados é de ARS 160.712 (cento e sessenta mil setecentos e doze pesos, aqui não se usa mais colocar os centavos pelo que percebo). Para se ter uma ideia disso em reais, recorro a uma média entre duas medidas de câmbio real / peso. A primeira é a que gritam nas ruas do centro os cambistas, a outra é um valor que se verifica pela web, em sites como do Western Union. A aposentadoria em fevereiro seria de R$ 731,00. Fico por aqui, tudo isso ajuda a pensar a Argentina, e ajuda a pensar o Brasil.


Fernando Seffner é professor da Faculdade de Educação da UFRGS.

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