Crônica

El Paro de 24 de janeiro em Buenos Aires: impressões pedestres

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El Paro de 24 de janeiro em Buenos Aires: impressões pedestres Foto: Arquivo pessoal

Passei parte da manhã, e parte da tarde, circulando nos locais de concentração do chamado El Paro de 24 de janeiro de 2024, na cidade de Buenos Aires. Também fiz alguns percursos em ruas e avenidas, me afastando e me aproximando do principal local de concentração, a Plaza Del Congreso, para verificar até que ponto as coisas estavam afetadas pelo evento. O dia esteve lindo, temperatura agradável, e esse vento delicioso que faz a cidade merecer seu nome, bons ares.

Há mais de uma semana se avolumaram nos jornais e programas de televisão notícias e informes acerca da manifestação. Pelas ruas e avenidas igualmente se percebia um maior número de cartazes convocando a população a aderir. Para além das convocações, saíram informações mais detalhadas acerca do funcionamento dos transportes, do horário das atividades do El Paro, orientações acerca da concentração e da dispersão. Em redes sociais abertas ou fechadas, que acompanho há algum tempo, associações divulgaram instruções sobre proteção legal, denúncia, acesso a advocacia de defesa em caso de haver detenções, indicando números de celular para contato. Os sindicatos das várias categorias, como bancários, transportes, lojistas, aeroviários, artistas, alimentação, divulgaram instruções específicas para seus públicos-alvo.

Pela manhã delegações começaram a chegar na Plaza Del Congreso. Pelo que percebi, a polícia de trânsito foi então cada vez fechando mais as ruas e avenidas do entorno à circulação de veículos. Inicialmente elas não estavam bloqueadas, isso foi se construindo ao longo da manhã. A agenda do movimento começou oficialmente ao meio-dia, e se estendeu até a meia noite. Mas a concentração estava encerrada ao final da tarde, após as falas. O funcionamento dos transportes se encerrou 19h, com retorno de circulação a meia noite. Escrevo esse artigo ainda na duração do período sem transporte, não tive como conferir se efetivamente ele se interrompeu por completo. Tal horário foi organizado de modo a permitir que as pessoas se deslocassem para a manifestação, dela participassem, dali se dispersassem pelas ruas do entorno, onde se podia ver todos os tipos de agrupamentos políticos e manifestações culturais. E todo mundo retornando para seus bairros até 19h com o uso do transporte público. Foi assim que entendi que a coisa funciona.

No momento de maior concentração de povo, na Plaza Del Congreso, a Avenida de Mayo estava sem circulação de carros desde a praça até a esquina da Nove de Julho, a avenida muito conhecida pela enorme largura e número de pistas. As ruas e avenidas do entorno da Plaza Del Congreso, como Callao, Rivadavia, Irigoyen, Entre Rios, Solis, e todas as demais ruas pequenas, estavam fechadas, com gente circulando. Sou incapaz de fazer estimativas de multidão, deixo isso para os entendidos. Mas posso garantir que havia muita gente, e muitos cartazes e faixas, e é disso que me ocupo aqui. As fotos que agrego na pasta indicada em link ao final do artigo não dão o devido registro da grandeza de público, pois eu só comecei a fotografar no momento da dispersão. Me dispenso de fazer considerações políticas mais abrangentes, pois também não sou cientista político. 

Enumero coisas que me chamaram a atenção. Uma delas é a abundância de bandeiras da Argentina, e de pessoas com camisetas com as cores do país. Além de chapéus, boinas, casacos, abrigos, meias e lenços no entorno do pescoço ou enrolados nos braços. As cores nacionais aqui, ao que me parece, não foram sequestradas pela direita. Ao contrário, elas servem de pano de fundo para uma das denúncias mais evidentes nos cartazes, sintetizada na frase “la patria no se vende, se defende”. A ideia de que é necessário defender a pátria argentina da venda – o que pode ser entendido como a privatização total, uma das diretrizes do governo – enseja inclusive a elaboração de cartazes com afirmações mais beligerantes, do tipo “Si quieres defender tu patria, alistate aqui”. As denúncias contra a privatização aparecem de formas muito criativas, por vezes em pequenos cartazes colados nas paredes, onde se lê “cuida que podem privatizar teu sorriso”. Ainda em relação as cores nacionais, muitos prédios privados, e estabelecimentos privados, têm a bandeira da Argentina posta na frente. 

Fiz alguns percursos pelas ruas, saindo da Plaza Del Congreso, e me distanciando dela de quatro a cinco quadras, para conferir o impacto. No entorno por onde andei grande parte dos estabelecimentos estava fechado. Retornei caminhando para o lugar onde moro, Palermo Soho, pela Avenida Santa Fe. Ali já as lojas estavam em sua maioria abertas, mesmo perto da hora de finalizar o transporte. Circulavam pessoas com faixas e cartazes, retornando da manifestação. Mas o que mais chamou minha atenção é que há alguns estabelecimentos que não fecham, mesmo estando no centro das manifestações, e rodeados por outros que cerraram as portas, nas proximidades da Plaza Del Congreso. Temos um banco fechado, uma loja de móveis fechada, uma farmácia fechada, um laboratório de análises clínicas fechado. No meio deles, uma cafeteria está de portas abertas, lotada, com aquelas enormes janelas de vidro. Na outra quadra temos uma loja petshop fechada, uma casa de câmbio fechada, uma loja de roupas fechada, uma livraria fechada. No meio delas uma casa de empanadas com as portas abertas, com fila para atendimento. Pizzarias, padarias, confeitarias, quiosques de guloseimas, hamburguerias, restaurantes, bares de drinks e de cerveja, sorveterias, todos abertos, no meio da multidão, sem medo algum de tumulto ou depredação. Com a dispersão, ficaram mais lotados do que já estavam. Comer e beber bem se conjugam com o desejo de se manifestar politicamente.

A preocupação com os aposentados se podia conferir de dois modos. Primeiro, pela participação direta deles e delas, com faixas e organizados em associações. Havia até mesmo gente em cadeira de rodas. Segundo, por alguns cartazes de categorias profissionais, mostrando casais de idosos, e onde se lia, com variações, frases como “no carajees a mis padres”, o que se pode traduzir como “não brinque com meus pais”. Parte dos cartazes e faixas estava dirigido aos deputados, que tem a missão de votar o DNU. Ali se liam ameaças de toda ordem em relação a manutenção dos seus mandatos. A sigla DNU, que significa “Decreto de Necesidad y Urgencia”, e que designa o que também se chama aqui de decreto ônibus, foi ressignificada nas faixas, onde se lia DNU “decididamente não é urgente”. Uma categoria que se manifesta de modo muito vibrante são os trabalhadores do campo da educação, e das universidades, com faixas e cartazes colados por muitos lugares. O discurso oficial de campanha de Milei falava em atacar uma casta. A palavra casta, pelo que percebi, aparece de muitos modos em cartazes e rabiscos nas paredes, mas isso ainda não consigo compreender em uma dimensão mais cuidadosa.

Por vezes flagrei certa falta de conexão entre as falas feitas pelas lideranças, quase todas ligadas ao movimento sindical, e de posse dos microfones e palanque, e a diversidade de pequenos grupos de meninas feministas, jovens LGBTQIAPN+, professores e professoras, artistas de teatro, agrupamentos das mais diversas culturas juvenis, com as mais diversas roupas e adereços. Quem parece dominar a organização do evento são as grandes máquinas sindicais, lideradas pela CGT. Mas uma parte importante do público presente parece ser originário de outros modos de associação. Nas muitas redes sociais em que estou inserido, e nas quais li matérias e comentários acerca da preparação do evento, tal falta de conexão foi discutida. 

Dentre as categorias que se manifestam, chama a atenção aquela dos trabalhadores do ramo da cultura, cinema, teatro, memória, museus. Tomam conta das ruas, fazem pequenos esquetes teatrais, carregam cartazes criativos, portam roupas coloridas. Todo o tempo em que estive pelas ruas não vi nenhum tipo de tumulto ou algo do gênero. No meio da multidão que se manifestava, o trabalho incansável dos catadores de latinhas, de papelão, as pessoas que pedem esmolas. Muitos cartazes falam da fome na Argentina.

São impressões da manifestação, sem nenhuma pretensão de esgotar seus significados. Agora é ler o que mais gente vai comentar, e formar um juízo! Quem desejar ver as fotos, clique aqui.


Fernando Seffner é professor na Faculdade de Educação UFRGS.

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