Crônica

Elaborações em tempo de cólera

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Elaborações em tempo de cólera

Este texto nos chegou por intermediação da Marta Orofino, que tem amigos e um filho vivendo na Polônia. Gente que está fugindo de lá. Ela me enviou o texto da Fernanda com este bilhete:

Acabei de receber da Fernanda. Contexto: ela disse que não conseguiu escrever mais e melhor porque ela e o marido estão neste momento arrumando a mochila pra ir pra Portugal.

Ano passado escutei de um amigo meu polonês, Piotr, que ele era a primeira geração da família dele que não tinha ido à guerra desde muito tempo. Eu já não lembro muito bem de quais guerras falamos, mas recordo nitidamente a expressão perturbadora que vi no rosto dele. Para quem aprendeu de geração em geração que tempos de calmaria por aqui não tendem a durar quando se trata de disputa territorial, a relativa tranquilidade, mesmo em tempos de pandemia, era motivo de receio. Menos como um presságio e mais como a história se repetindo, alguns meses depois dessa conversa o país vizinho está em guerra. A pequena Ucrânia enfrentando a grande Rússia, como uma anedota geográfica do mito de Davi e Golias.

Sim, já havia conversas há algum tempo: “Será que o Putin vai atacar?” “Se for, vai ser logo, porque depois do inverno ele perde o acesso à Ucrânia” , diziam os mais entendidos de geografia, pois uma vez que o gelo se desfizer se desfaz também o corredor a que as forças militares russas têm acesso. Logo depois descobriram presença do exército russo em outras partes da fronteira, essas talvez menos sazonais.

E assim passamos, brasileiros, poloneses, familiares, amigos, no trabalho, no bar, no almoço, antes de dormir, por alguns meses debatendo algo que não queríamos acreditar que ia acontecer. Com o avançar do tempo e a primavera se aproximando, estávamos dispostos a crer que a teoria de uma guerra não iria se concretizar. 

Então chegou o fim de fevereiro e eu fui viajar para Inglaterra, visitar minha irmã. Decolei pensando no perigo da covid, aterrissei com a Ucrânia em guerra. De repente eu começo a ver imagens de tanques de guerra russos atropelando carros civis e vídeos de cidades ucranianas de mais de 1000 anos sendo bombardeadas. Do outro lado, vejo uma Ucrânia forte e humana, soldados defendendo sua cultura milenar e civis acolhendo russos desertores.

No dia em que completei 34 anos, Kiev foi bombardeada. As mensagens e ligações que recebi não eram de parabenização, mas de preocupação. A curiosidade sobre o futuro desta vez envolvia planos muito reais, imediatos e pouco agradáveis. A incerteza do cenário também gerou a incerteza em querer voltar para Cracóvia. A verdade é que em uma guerra tudo pode mudar do dia para a noite, e mesmo que a guerra seja na Ucrânia eu estaria mentindo se dissesse que não estava com medo de qual seria a situação ao voltar para casa. 

Por mais que eu quisesse celebrar a vida, aquele era um dia de pêsames. Pessoas com quem há anos não converso me ligando apenas para perguntar, numa curiosidade sagaz, sobre crise imigratória ou qualquer outro detalhe sórdido da guerra. E eu passei meu aniversário desviando ligações e mensagens e planejando o que fazer ao voltar para a Polônia. Com os nervos à flor da pele, a ansiedade aumentando e exausta mentalmente, peguei o avião rumo à Cracóvia.

(Continua semana que vem… ou não)


Fernanda Concatto se apresenta: Profissionalmente eu sou psicóloga, fiz FABICO, sou mestre em comportamento humano pela FGV/EBAPE. Hoje trabalho como Data Manager para um banco suíço. Pessoalmente eu já moro na Polônia há 4 anos, sou casada há 7 anos, já morei em 5 países diferentes. Ah, eu esqueci de comentar que o vazamento de ontem, de que a Rússia tem planos de invadir a Moldávia, fez com que a gente ficasse ainda mais cético com a guerra e agilizasse a saída.


O editor (LAF) esclarece: o filho da Marta também está saindo da Polônia. Como disse a Fernanda, eles resolveram pagar pra não ver.

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