Crônica

Eu, abobada da enchente

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Eu, abobada da enchente Foto: Julio Ferreira/PMPA

Cresci ouvindo minha avó contando sobre a enchente de maio de 1941 em Porto Alegre. Minha bisa, atenta a detalhes − sempre a corrigia dizendo que as chuvas iniciaram em abril. A vó retrucava que foi em maio que a casa onde moravam e o armazém de secos e molhados de meu avô tinham ficado embaixo d’água. A casa, no centro da cidade, era de dois pisos, a família se entrincheirara no andar de cima. Tinham água e comida, que resgataram do armazém, e acolheram parentes e amigos desabrigados pela enchente. Minha bisa que sentada em cadeira de balanço, sabia contar como ninguém uma história, assumia sempre a narrativa, que em diferentes versões fazia parte de nosso repertório favorito de suas bem contadas histórias. Quando estava por perto, meu pai, José, acrescentava outros detalhes. Ele, durante a “Grande Enchente” − assim se referiam ao dilúvio − com 14 anos em 1941, acolheu na casa amigos e colegas do Colégio das Dores. Alguns deles, recordava meu pai, os que perderam tudo, sofreram de um estranho mal, tornaram-se abobados da enchente.  Meu pai falava em uma “síndrome depressiva de quem perdera tudo com a enchente, inclusive suas referências de realidade, pessoas que mesmo com a água tomando conta de tudo, não acreditavam que aquilo estivesse acontecendo.” Era alguma coisa mais ou menos assim que meu pai falava em tom professoral − afinal era um professor − mas talvez só mais tarde eu tenha vindo a entender o que ele dizia. 

Para minha bisa e para nós, sua audiência − crianças que se acomodavam docilmente em seu entorno − histórias dos abobados da enchente foram muitas, tornaram-se um gênero em seu infinito repertório. E, estes personagens, os abobados da enchente, passaram a povoar outras de suas muitas histórias contadas ao ritmo do balanço de sua cadeira e da cadência do constante abano do leque em sua mão. O personagem abobado da enchente era um apalermado, um ingênuo, um crédulo. Acreditava em tudo que lhe contavam, mesmo quando a realidade se apresentasse em toda sua dimensão, evidenciando o contrário. As histórias podiam ser cômicas ou tristes, pessoas alheias a realidade ou de tal forma abismados com os acontecimentos que negavam o que seus olhos enxergam e eram protagonistas de situações absurdas. Abobados da enchente, originalmente aqueles diretamente atingidos pelas águas da enchente de 1941, pessoas traumatizadas que perderam parentes, casa, pertences e junto com tudo isso, a esperança. Neles teria se instado uma profunda indiferença com a vida.  Meu pai, eu lembro, dizia nos anos 50 de minha infância, que eram “apáticos e desesperançados como aqueles que tinham vivido a Grande Guerra”. Na história de meu mundo, lá pela idade que comecei a ler, já havia uma Grande Enchente e uma Grande Guerra balizando a História do “h” maiúsculo, a da humanidade. 

Abobados da enchente, nas histórias que contava minha bisa, depois passou a ser uma categoria de pessoas. Dizia-se − eu lembro ainda − “aquele é filho de um abobado da enchente”, inferindo derrogatóriamente diferentes graus de gravidade aqueles que sofriam de uma certa dificuldade de aprendizado ou confusão mental. Um pouco mais tarde, quando ainda não nos preocupávamos com a violência das palavras, abobado da enchente passou a compor o léxico porto-alegrense como sinônimo de “bobo”, “apalermado” ou “lesado”. 

É maio de 2024. O Rio Grande do Sul está sob chuvas intensas, sequências de rios no Estado transbordam levando tudo consigo, cobrindo casas, praças, plantações, cidades inteiras. Uma água com pressa vai tomando conta de tudo, dominando territórios. São leitos de rios retomando seus espaços originais e suas margens, por nossa ação e ganância, desmatadas, não oferecem resistência alguma. O grande volume de água busca seu curso para o oceano, encontra obstáculos e vai criando alternativas, preenche tudo, devasta o que encontra em sua frente. Sua passagem e seu desague ao fim da lagoa também foi estreitado por ação do homem. As águas, inquietas e descontentes, por não conseguirem vazar, demoram-se e avançam sobre as cidades que encontram em seus caminhos. 

Porto Alegre está submersa. A maior parte do meu bairro, Menino Deus, mergulhado em água de cor marrom avermelhada, o líquido transborda do Guaíba e por todos os bueiros das ruas e das casas. Sexta-feira, 3 de maio, fazemos compras como se nos preparássemos para uma guerra: estocamos água, comida, lanternas, pilhas. Permaneceremos. No sábado, quando acordamos, a rua estava coberta de água. O que era uma rua agora é um riacho. Chegam notícias alarmantes de outras áreas da cidade. Acaba a luz elétrica. Mas, imagine, o nosso prédio tem gerador. “Mas” − conjetura-se – “não haverá energia para as bombas abastecerem as caixas d’água”. Acaba o fornecimento municipal de água, não há água a ser bombeada, resta racionar a água que ainda temos na caixa d’água do prédio. No domingo, silenciosa e persistente, a água avança. Sobe. Se impõe, indiferente ao fato de que a chuva tenha parado e é um belo dia de sol. Impassível, como as águas que a tudo domina, assisto pelas janelas aquela cena. Estamos no décimo-primeiro andar, a água não chegará aqui. Imagine! Este é um prédio seguro, com todos os recursos, capaz de gerar sua própria energia, escadas pressurizadas, portaria virtual. Um luxo. … Olho para baixo, um rapaz passa remando em uma canoa improvisada. Helicópteros, como ruidosos besouros metálicos, cortam os céus. Um caminhão do Exército oferece ajuda aos que querem deixar suas casas. Não é conosco. Isso não pode estar acontecendo. Um cheiro meio nauseabundo exala do rio marrom que passou a existir onde antes havia uma rua ladeada por amoreiras. Estaria eu culpado a água insalubre pela náusea que a ansiedade instaurara em meu corpo?  Constata-se: a água continua a subir. Novo recorde para o nível do Guaíba, 5 metros e 33 centímetros. Mas a água não caí dos céus, a chuva dera uma trégua, a água surge dos bueiros aos borbotões acompanhada de ratos e baratas. Fala-se de cobras e lagartos. Jacarés? Contam que um jacaré passeia, digo, nada, pelo bairro. Não pode ser verdade.  Segunda-feira, o gerador − que refrigerava nossa comida, re-carregava nossos celulares e mantinha acessa alguma esperança de que resistiríamos e que a calamidade passaria longe de nossas confortáveis vidas – pifou pela sobrecarga, isso depois de uma solidária e arriscada operação de guerra para se conseguir mais diesel.

Incrédulos e anestesiados pegamos alguns pertences, documentos e computadores e conseguimos ainda sair do prédio com água até os joelhos e embarcarmos em nossa camionete, felizmente, alta. Sempre reclamara que era muito alta. O assombro era imenso e a sensação era a de que não fazíamos parte daquele cenário, estávamos em outro lugar, apartados daquela realidade. 

Junto com milhares de carros, em uma espécie de transe coletiva, em ordenada fila, como se estivéssemos todos participando de um cortejo fúnebre, rumamos para o litoral pela única saída possível da cidade. Resignados, andando em câmara lenta infinitas horas até chegarmos a um lugar onde o ritmo de vida parecia mais normal. Como se nos evadíssemos da tela de um filme de desastre, meio B, onde cientistas no início inutilmente anunciam a iminência de uma catástrofe climática.  Naquele quase paralisado cortejo na estreita RS 040, éramos uma massa de retirantes climáticos. 

Um sentimento de devastação foi tomando conta de mim, como se eu estivesse afogada na água viscosa e fétida. Dentro do carro, no paciente cortejo que nos leva a algum lugar seguro, encontro uma garrafa de álcool gel que deve estar lá desde o último desastre, a Grande Pandemia. Esfrego álcool por todo meu corpo na sensação de que estou muito suja. Já era tarde, o dilúvio já tinha inundado meu ser e uma estranha angústia invadido minha alma. Eu me sentia paralisada e impotente em meio uma situação que me soava totalmente irreal. Eu, sem dúvida, me tornara uma abobada da enchente.


Ondina Fachel Leal é antropóloga, mas antes de estudar antropologia teve formação e dedicou-se à fotografia, na Califórnia dos anos 70.

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