Crônica | José Falero

Frente Fria

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Frente Fria

Eu fico falando por aí que não gosto da Cidade Baixa porque lá tem brancos demais, porque lá tem viaturas da polícia demais, porque lá não se pode ser pobre em paz. E eu acho tudo isso mesmo. Mas dia desses eu identifiquei outro motivo pro meu rancor. A Cidade Baixa me dá saudade do meu pai.

É estranho, mas quando eu tô na Lima e Silva, ou na José do Patrocínio, ou na Sarmento Leite e, de repente, me lembro do meu pai, me dá uma vontade enorme de ir embora pra casa. É como se o fato de o meu pai estar morto, e portanto já não ter como surgir na próxima esquina, é como se isso de algum modo drenasse todo o sentido da minha presença ali.

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Eu fico falando por aí que não gosto da Cidade Baixa porque lá tem brancos demais, porque lá tem viaturas da polícia demais, porque lá não se pode ser pobre em paz. E eu acho tudo isso mesmo. Mas dia desses eu identifiquei outro motivo pro meu rancor. A Cidade Baixa me dá saudade do meu pai.

É estranho, mas quando eu tô na Lima e Silva, ou na José do Patrocínio, ou na Sarmento Leite e, de repente, me lembro do meu pai, me dá uma vontade enorme de ir embora pra casa. É como se o fato de o meu pai estar morto, e portanto já não ter como surgir na próxima esquina, é como se isso de algum modo drenasse todo o sentido da minha presença ali.

Às vezes me sinto meio meteorologista. A diferença é que, em vez de estudar e colher dados sobre os fenômenos atmosféricos, eu estudo e colho dados sobre os fenômenos da minha vida interior. Daí, depois de identificar esses fenômenos, depois de analisá-los, depois de classificá-los, fico quebrando a cabeça, tentando, sei lá, fazer uma espécie de previsão do tempo de dentro de mim mesmo.

Desde que tomei consciência desse fenômeno estranho pela primeira vez, tenho ficado atento às suas ocorrências. A última vez foi logo após uma visita à Bamboletras. Depois de sair da livraria, eu ainda tinha que ir ao correio enviar exemplares do meu primeiro livro pra algumas pessoas. Comprei um latão no caminho e segui em direção ao Centro, com a sensação de que tudo estava muito bem, de que tudo estava no seu devido lugar, de que eu era parte do céu azul. Um estado de espírito bom. Eu conseguia extrair prazer e alegria até de um simples suspiro. Mas aí passou um cara de bicicleta, indo entregar um galão de água mineral. Um cara gordinho. E foi foda, porque eu lembrei do meu pai.

O meu pai era gordinho. O meu pai me levava pra andar de bicicleta. Também me levava pra fazer compras no Zaffari da Lima e Silva ou no da Fernando Machado. A figura do meu pai dava significado à minha presença na Cidade Baixa, quando a gente morava ali. Mas agora o meu pai tá morto, e lembrar disso fez eu me perguntar que diabos eu tava fazendo ali, afinal de contas. Tive vontade de não estar onde eu estava. Bom, acho que não era exatamente isso, não chegava a ser vontade de não estar onde eu estava, como se sentisse perigo ao meu redor ou aversão àqueles ares; acho que era mais como uma forte impressão de que eu estava em um lugar onde não havia motivo algum pra eu estar.

O estranho disso tudo é que eu só fui pra Cidade Baixa porque tinha um compromisso na Bamboletras, e só segui pela Lima e Silva em direção ao Centro porque tinha outro compromisso no correio. Ou seja, sim, havia motivos pra eu estar onde estava. Por que, então, eu sentia justamente o contrário?

Me sentei no chafariz desativado que tem naquela praça que fica no final da Lima e Silva. Dali dá pra ver o prédio onde eu morava com o meu pai, quando ele era vivo. Fiquei pensando nele.  E também fiquei me perguntando se era possível que, de algum modo, eu arrumasse compromissos na Cidade Baixa de propósito, mas sem querer ao mesmo tempo, só pra passar por ali, por aquelas ruas, movido por uma esperança subconsciente e utópica de, talvez, por acaso, esbarrar com o meu pai ao virar uma esquina.

Que bosta, eu fiquei pensando. Acho que a vida da gente perde um pouco de significado e de propósito a cada ente querido que se vai. A minha existência já não pode ser plena de razão de ser, pelo simples fato de que é impossível que aquele cara indo entregar água mineral seja o meu pai. Não é o meu pai. Não importa quantas vezes eu cruze com ele, nunca será o meu pai. Nunca. E, no entanto, a cada “nunca” que eu digo pra mim mesmo, uma parte de mim insiste em retrucar: “Será? Tem certeza? Quem sabe na outra rua? Não será ele lá, vindo com aquelas sacolas?”

Como é difícil aceitar. Duas décadas e não consigo aceitar. Não se trata de aceitar a morte do pai; trata-se de aceitar a incompletude. Pois nunca voltarei a ser completo como já fui um dia. Eu ainda sou filho da dona Rita, o que é uma bênção, porém já não posso mais ser o filho do seu Zé. Isso está perdido pra sempre.

Eu acho que eu sou um pouco como aquela porcaria daquele chafariz daquela praça, que em algum momento da história encantou incontáveis olhos, jorrando água pra quem quisesse ver, mas agora precisa se contentar em servir apenas de assento pra bundas cansadas.


José Carlos da Silva Junior nasceu e vive na Lomba do Pinheiro, periferia de Porto Alegre. Adotou o pseudônimo “José Falero” em homenagem à mãe, de quem herdou a veia artística, mas não o sobrenome. É escritor, autor de Vila Sapo (Venas Abiertas, 2019) e participante das antologias À margem da sanidade (J. Vellucy, 2018) e Ancestralidades: Escritores Negros (Venas Abiertas, 2019). Trabalha como auxiliar de gesseiro para não morrer de fome, e toca cavaquinho para não morrer de tristeza.

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