Crônica

Matar Negro é Adubar a Terra

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Matar Negro é Adubar a Terra

– Negro sujo!

– Macaco!

– Negro de merda!

– Volta para África!

– Volta para selva!

– Escória!

– Lixo!

– Matar negro não é crime, é adubar a terra!

O que era para ser mais um jogo de futebol do campeonato gaúcho de futebol da primeira divisão acabou se transformando em humilhação, vandalismo e no crime de RACISMO e Injúria Racial.

Apitar na serra gaúcha nunca foi uma missão fácil, pois a irracionalidade dos dirigentes e torcedores sempre vinha à tona. Começavam com gritos, passavam para palavrões e rapidinho para ofensas racista. Era meio que um ritual que nunca falhava.

Passei por alguns casos de racismo no período em que fui árbitro de futebol, e denunciei através de relatos nas súmulas, que são o documento oficial da partida, onde vão todos os ocorridos do jogo, o antes, o durante e o após a partida. Infelizmente, quem julga os casos de racismo na Federação Gaúcha de Futebol são pessoas coniventes, que compactuam com esse crime, tratando-o como algo sem relevância. 

Eu já tinha algumas técnicas para preservar a minha saúde mental quando saía a minha escala para apitar em alguma cidade da Serra Gaúcha. Entre 2006 e 2014, eu resolvi não aquecer mais no gramado, para evitar os xingamentos racistas. Enquanto os meus colegas brancos faziam o aquecimento no gramado, para se acostumarem com o ambiente da partida, com o calçado que iriam usar, eu ficava sozinho no vestiário fazendo alguns exercícios para aquecer o corpo e elevar os batimentos cardíacos, e principalmente preparando a minha mente para suportar não só o estresse do jogo, mas os xingamentos racistas enfurecidos dos torcedores. E eram ofensas independente de boa ou má atuação. 

Naquela noite ouvi os xingamentos racistas ao entrar em campo, no final do primeiro tempo, no retorno para o segundo tempo e no final da partida. Um pequeno detalhe: não houve um lance polêmico, não teve nenhuma expulsão, não teve nenhum gol irregular, a equipe do Esportivo de Bento Gonçalves venceu a partida, e mesmo assim não me pouparam do ódio e do RACISMO.

Lembro que estava acompanhado com dois policiais da Brigada Militar, que viram tudo e nada fizeram, nem tentaram coibir as ofensas. Entrei para o vestiário, tomei meu banho, me vesti, recebi minha taxa de arbitragem, contei nota por nota para conferir o valor, abri a porta do vestiário e fui colocar a minha bolsa no porta-malas para ir embora o mais rápido possível daquele local.

Imaginei que, depois de tantas ofensas criminosas gratuitas, eu fosse poder voltar para casa. Queria chegar em casa para beijar o meu filho Miguel, que com apenas 11 meses jamais imaginaria o que o “babai” pudesse ter passado. 

Mas ao me deparar com o meu carro com as portas amassadas à pontapés, com cascas de bananas sobre o capô e bananas no cano de escapamento, percebi que a coisa havia sido orquestrada não só por torcedores, mas por alguém, dirigente ou funcionário, pois naquele espaço somente pessoas do clube tinham acesso.

Quando vi o meu veículo daquela maneira, chamei um dos meus colegas, que colocou as mãos na cabeça e, sem entender nada, ficou em silêncio.

Eu já havia passado por inúmeras situações de RACISMO na minha vida, mas não com requintes de crueldades e covardia como naquela noite. 

Quando eu era adolescente e comecei a namorar uma menina branca, ouvi uma frase marcante, quando fui pela primeira vez na casa dela como namorado, já tinha ido como amigo. Assim que entrei na casa, ouvi a tia dessa menina gritar da cozinha: “Esse negro está autorizado a entrar aqui?”

Aquilo foi muito mais que soco na boca do estômago, foi um nocaute.

Essa frase serviu como um mantra na minha vida, pois eu não precisaria da autorização de ninguém para entrar em qualquer local a que eu pudesse ter acesso, assim como qualquer pessoa branca.

E no futebol, quando fiz o curso de arbitragem, imaginei que ali seria um espaço democrático onde eu não precisasse da autorização, mas que eu conquistasse estar autorizado pela minha competência a cada partida. Ledo engano!

Naquela noite, quando encontrei o meu carro naquelas condições, depois de ter ouvido todos aqueles xingamentos racistas, me veio à mente aquela frase tão perversa, que até hoje é muito viva e presente no meu dia a dia.

Só que eu não precisava pedir autorização para estar: era eu quem autorizava e desautorizava quem podia ou não estar ali, dentro ou fora do campo.

Este negro é que autoriza, a partir de agora!


Márcio Chagas da Silva é ex-árbitro de futebol, ativista antirracismo, professor de Educação Física, pai do Miguel e da Joana.

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