Crônica

Mês da Paciência Preta

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Mês da Paciência Preta Foto: Emilene Pimentel

“Preciso de uma palestra aqui na minha Escola no dia 20 de Novembro às 10h, não tenho nenhum cachê para oferecer, mas seria importante a tua presença para falar com a gurizada que gosta de futebol. Caso não possa, indique alguém.”

Quando está terminando o mês de outubro e iniciando o mês de novembro, as mensagens que recebo pelo WhatsApp ou no direct do Instagram, em geral são assim. 

Como é que uma escola, universidade, empresa ou entidade que se diz antirracista, não inclui em seu planejamento e calendário anual atividades para o Novembro Negro? Por que acreditam que pessoas negras estarão à disposição para irem gratuitamente nesses lugares, e de última hora?

Não quero dizer com isso que não gosto de receber convites, eles são sempre bem-vindos, inclusive participo frequentemente (sem cobrar cachê) de eventos, palestras, podcasts, etc. Gosto de falar sobre minha trajetória e de compartilhar erros, acertos e reflexões sobre as escolhas que pude fazer. O que faz com que eu decline de  “convites” deste tipo e a forma com que são feitos. Muitas vezes já os aceitei, mas hoje tenho a compreensão muito nítida de que são “convites” para que se preencha um buraco no calendário, para que se “limpe a barra” do estabelecimento e que na superfície dá aquela sensação de que estão cumprindo com seu papel antirracista na sociedade. Mas na verdade são convites que dizem mais sobre quem está convidando do que sobre quem está sendo convidado. É muito cômodo para branquitude lembrar que em Novembro, como justificativa social, buscar perfis de pessoas negras que militam para palestrar de graça em algum espaço, como se fosse a “chance de ouro” para esse preto poder contar suas dores e sensibilizar quem esteja ouvindo. Sou preto o ano todo, e não só em novembro!

Ontem,  assistindo no cinema o filme sobre a trajetória artística e pessoal do Mussum, uma das cenas me fez refletir sobre a questão das possibilidades de decisão. Foi um bonito diálogo entre ele e sua mãe (que já estava doente). Com tristeza e dor, Mussum confessa que achava que tinha tomado decisões erradas em sua vida, sendo que ela responde: “não, meu filho, o importante é que você teve escolhas, que bom que pode decidir entre caminhos, eu não tive essa possibilidade”. 

Os “convites” para o mês da Consciência Negra me suscitaram isso: ter a possibilidade de escolher é para muito poucos. Para as pessoas negras ela é menor ainda.

A luta antirracista começa com o respeito e a consciência em reconhecer que estamos engatinhando como uma sociedade igualitária e livre de qualquer tipo de preconceito.

Às vezes me esqueço que um dia fui árbitro de futebol, que sou pai de duas crianças, que além da luta e da da militância, eu preciso viver como qualquer outra pessoa não-negra, ter meus sonhos e desejos, sem precisar estar com os punhos cerrados o tempo todo, aguardando um olhar de desconfiança ou desprezo.

Quando digo que o racismo mata e adoece, é dessa maneira que ele atua diariamente, agindo de forma tortuosa, entre eventos violentos e sutis, raramente difícil de provar, pois sendo o crime perfeito, quem comete sabe que não vai dar em nada, e infelizmente não dá mesmo.

O mês da paciência preta – que no seu princípio começou como dia, se transformou em semana e se tornou um mês –, só vai ter sentido quando realmente houver o reconhecimento de que os séculos de escravização deixaram e ainda deixam consequências diretas na vida da população preta, e quando políticas públicas de longo prazo forem efetivadas para repararem os danos causados historicamente.

Foram quase 400 anos de escravização no Brasil, uma abolição falaciosa, em que jogaram os negros à mercê da sorte.

Sou a quarta geração da minha família que não precisou usar os grilhões e correntes nos pés, mas ainda vivo com o medo de ser exterminado com uma bala perdida e vivenciar algum caso “isolado” de racismo.

Por que nascemos devendo e sujeitos a este ódio gratuito, sendo que quem realmente nos deve algo é o Estado Brasileiro?

Haja Paciência Negra para resistir aos “convites” para limparmos os trilhos de quem tem um ano inteiro para fazer cumprir a Lei 10639/2003, mas só lembram das pessoas negras no mês de Novembro.


Márcio Chagas da Silva, 47 anos. Professor de Educação Física, ex-árbitro de futebol Aspirante FIFA, melhor árbitro Campeonato Gaúcho 2008/2011/2012/2013/2014, speaker TEDX Unisinos 2019, pai do Miguel e da Joana, comentarista de arbitragem RBS 2014/2020, canal TNT Sports 2021, assessor deputada Laura Sito, militante antirracista ✊🏿. Projetos @utopia_possivel.

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