Crônica

Meu relato de aborto

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Meu relato de aborto Foto: Mídia Ninja/Licença CC-BY-NC SA 2.0

Uma em cada sete mulheres com até 40 anos já fez aborto no Brasil. É estatisticamente muito provável que você conviva com elas. São mulheres que você ama, admira, que não imagina – em situações que você nem imagina. Mas quantas histórias de aborto você já ouviu? Me chamo Tatiana Reckziegel, sou jornalista, tenho 33 anos e este é o meu relato pessoal de aborto.

O começo dessa história é, de longe, a parte mais difícil e na qual eu mais penso. Tinha meus 20 e poucos anos, ainda estava na faculdade e fazia estágio. Depois de uma festa, um colega de trabalho manteve relações sexuais comigo alcoolizada sem consentimento e sem proteção. Mais de 10 anos depois, eu ainda não consigo dar o nome que isso tem. Mas você sabe. Eu não tive consciência do que tinha acontecido naquela noite até descobrir que estava grávida.

Aqui as coisas poderiam tomar muitos rumos. Não sei quanto tempo eu levaria pra processar a ideia de que tinha sofrido um abuso e que poderia acessar um aborto legalizado. Nem sei ao certo quantas etapas, que julgamento moral estaria envolvido e o custo emocional de revirar uma ferida recente. Só sei que eu tinha um sentimento claro de que não podia levar adiante aquela gestação. E foi nessa certeza que eu me agarrei.

Existem abismos entre diferentes relatos de aborto. Por isso, é importante para esta história que você saiba que sou uma mulher branca, de classe média, com um suporte familiar não religioso. Me senti segura para contar à minha mãe o que estava acontecendo e entendo que esse foi um dos meus grandes privilégios, ter o apoio dela independente da decisão que eu tomasse. Conversamos muito. Ela mesma engravidou aos 18 anos, passou semanas com o remédio para aborto na bolsa e decidiu ter, me ter. Nos debruçamos juntas sobre todas as possibilidades, cenários e consequências. Decidi o que urgia dentro de mim desde que descobri, abortar.

O tempo é crucial para um aborto seguro. Quanto mais se espera, mais complexo fica o procedimento. Fui atrás de clínicas, pesquisei medicamentos, li muito sobre o assunto e até conversei com a minha ginecologista na época. Ela era contra o aborto, mas me pediu os exames iniciais da gestação para entender meu estado de saúde. Eu também sabia que precisava de algum exame que estimasse o tempo da gestação para abortar. Com 20 e poucos anos, o que eu não sabia era que até a médica que faz a ecografia tem uma expectativa sobre a reação de uma grávida durante o exame – e não existe espaço para algo além da alegria absoluta.

Depois de alguns dias, que a urgência fez parecer meses, encontrei o contato de um médico que já havia sido preso diversas vezes por praticar aborto em Porto Alegre. Liguei, me disseram que ele estava de férias pelos próximos meses. Desliguei, chorei, me desesperei. Mas aí me dei conta de que era estranho e que devia mesmo parecer estranho, afinal, era ilegal. Liguei de novo e de novo. Insisti, e a pessoa do outro lado da linha me conseguiu um horário. Aqui você talvez esteja imaginando que nos encontramos em um lugar escuso. Na verdade, era um consultório bastante confortável no Moinhos de Vento.

Na companhia da minha mãe, conversamos abertamente sobre aborto. O médico avaliou meus exames, constatou que eu estava nas semanas iniciais da gestação, dentro do limite de doze que ele aceitava. Detalhou o procedimento do início ao fim, a técnica e os equipamentos. Ainda disse que tinha fortes convicções ideológicas da importância de acesso ao aborto seguro. Falamos sobre o Uruguai, que na época estava discutindo a legalização. Lembro que foi uma conversa casual, uma quebra bem-vinda no medo que eu estava sentindo. Por fim, combinamos o esquema. Um motorista nos buscaria, eu e minha mãe, no estacionamento de um shopping e nos levaria ao local do procedimento, assim o endereço ficava em sigilo.

No dia marcado, tudo aconteceu como previsto. Minha mãe ficou em uma sala de espera. Me troquei, entrei em uma espécie de ambulatório improvisado, tudo bastante limpo aos meus olhos. O médico estava sozinho, conversamos, ele me aplicou a sedação e só lembro de acordar me sentindo aliviada. Para mim, foi o melhor que um aborto ilegal pode ser. Só que poderia ser em um hospital, poderia ser gratuito e, acima de tudo, poderia ser para todas. O meu aborto custou 7 mil reais. Não era e ainda não é pouco dinheiro, mas era uma opção para mim, diferente da imensa maioria das mulheres que abortam no Brasil.

Já falei muito sobre esse assunto nos meus círculos mais próximos. Acolhi amigas e amigas de amigas que pensaram em abortar. Nenhuma história convence uma mulher de fazer algo diferente da verdade dela. Quem quer seguir com a gravidez, vai seguir. Quem quer abortar vai abortar, não importa como. É ouvindo relatos de aborto que a gente encara a desigualdade entre um aborto solitário com um cabide e o aborto que eu pude acessar. Essa é uma versão breve da minha história. Um aborto tem muita tristeza, não é bonito, nem fácil. Mas, se ele for seguro, já faz toda diferença. Ninguém que passou por isso deseja fazer múltiplos abortos. A gente só quer viver.


Tatiana Reckziegel é jornalista e editora de redes sociais e comunidades da Matinal.

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