Crônica

Minha amiga baleia

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Minha amiga baleia Pitangueira Noir (Petrópolis), 2021. Ilustração: Edgar Vasques

*Diversas imagens de Edgar Vasques homenageiam Porto Alegre na edição 67 da Parêntese. Você pode ver o ensaio gráfico completo na seção cartum. 

Os cinemas de Porto Alegre, sobretudo os de calçada, foram as minhas companhias mais serenas e verdadeiras, baleias em cujos estômagos eu me enfiava pra esquecer da vida e, inebriado por um romantismo que até hoje não sei explicar direito, esquecer de mim mesmo.

Deles todos, daqueles anos do século passado, quando os cinemas de shopping-center não eram a única opção, o que sinto mais saudade é do Bristol, das sessões da meia-noite no Bristol. Ele/ela foi o primeiro cinema onde entrei na vida. Eu, minha mãe e meu irmão fomos assistir à animação Robin Hood, da Disney. Foi num sábado à tarde do verão de 1973. Nunca esqueci desse dia. (As pipocas foram trazidas de casa, feitas em casa, porque comprar na rua era caro para nós.) 

Nos anos oitenta, um ex-colega meu do Champagnat, um que teve de largar a escola porque a família teve problemas financeiros, o que o levou a parar de estudar no colégio, começou a trabalhar no controle da catraca recebendo os bilhetes das pessoas que entravam – então eu acabava entrando de graça nas sessões da noite. Mas não era por isso. Naquela sala, de filmes mais autorais, mais cults, do que os exibidos no Baltimore, eu assisti e reassisti aos filmes mais importantes da minha vida, como O sacrifício, do Andrei Tarkovski. 

Na maioria das vezes, eu ia sozinho, levava umas duas latinhas de cerveja, e assistia uma ou duas sessões do mesmo filme. Era o meu lugar sagrado na avenida mais sagrada de Porto Alegre pra mim; eu simplesmente amava aquelas poucas dezenas de metros de calçada entre a Lancheria do Parque e o Bar Ocidente. Nos sábados à noite, eu levava quase duas horas entre um local e outro, porque eram tantos os conhecidos que se podia encontrar e conversar e sonhar de um jeito que só se consegue sonhar no final da adolescência, início da idade adulta.

Hoje em dia, quando em Porto Alegre, quando passo de carro por ali não chego a me sentir afetado pelo saudosismo, mas quando passo a pé, sempre, sinto uma saudade imensa daquela baleia que me recebia na sua barriga escura e me fazia feliz e, sendo eu quase sempre tão desesperançado, acreditar no futuro, essa coisa que, agora entendo melhor, depende tanto da arte, das narrativas marcantes que se possa encontrar.   


Paulo Scott – É escritor. Autor de vários livros, dentre eles Mesmo sem dinheiro comprei um esqueite novo (Companhia das Letras, 2014) e Marrom e Amarelo (Alfaguara, 2019). Seus trabalhos estão publicados em Portugal, Inglaterra, China, Estados Unidos, Alemanha, Croácia, México, França e Argentina.  

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