Crônica

O mundo ou o mundo segundo José Falero, Parte 5 – Dois mundos

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O mundo ou o mundo segundo José Falero, Parte 5 – Dois mundos Foto: Google Maps
Eu precisava pedir desculpas. Era o mínimo que eu poderia fazer. A verdade é que não havia como eu desfazer o que havia feito, mas pelo menos havia a culpa, e isso mostrava que eu tinha consciência do comportamento escroto que tive. Assim que ela voltasse do raio-x, a cutucaria e pediria desculpas. Não seria melhor ficar quieto, no entanto? E se as minhas desculpas não fossem bem aceitas e acarretassem mais fúria, dessa vez contra mim? Ruminava meus pensamentos quando ela voltou mancando. Sua perna permanecia engessada. Com muita dificuldade quase se jogou no banco à minha frente, ocupando o mesmo lugar de antes. Meu coração disparava. Sabia que deveria pedir desculpas, mas onde estava a coragem? Fechei os olhos, respirei fundo muitas vezes. Ela havia parado de resmungar. O correto seria deixar a situação como estava, mas houve meu impulso: inclinei-me para frente e a cutuquei. Ela se virou para trás. Eu disse: “Tu me desculpa ter falado contigo daquele jeito. Fui grosso contigo. Desculpe mesmo.”  Ela abriu um enorme sorriso e respondeu: “Não tem problema, moço, tá tudo bem.” “Tu me desculpe mesmo”, continuei.  Reparei que a mulher que estava ao seu lado prestava atenção à conversa. Eu disse: “Tu tinha razão em reclamar, e eu não deveria ter pedido para tu fazer silêncio.” “Tá tudo bem, moço, não te preocupa. Eu fico puta quando esses vagabundos passam na minha frente. Sabe por que eu tô com essa perna quebrada? Porque eu trabalhava de serviços gerais aqui, para uma firma terceirizada. Daí deu um tiroteio e eu corri para me esconder atrás de um carrinho de limpeza. Mas no corre-corre alguém empurrou ele, que escorregou e prensou a minha perna. E tudo isso no meio de um monte de tiros.”  “Nossa, que situação horrível”, foi o que eu consegui dizer, voltando a me encostar de volta contra o banco. Eu havia tomado um soco de consciência. E ela continuava rindo. Na crônica Senhor de todos os músculos, Falero diz: “A verdade é que o nosso espírito, a nossa alma – ou seja lá o nome que se prefira dar a essa porção imaterial que nos compõe – passa a maior parte do tempo encolhida, borocoxô, submissa a forças externas, refugiadas no recôndito de nosso ser. Contudo, à maneira de um sol indeciso, que ameaça nascer e logo torna a recolher-se sem jamais atingir o zênite, assim essa nossa parte, em momentos efêmeros, rebela-se e avoluma-se, ao ponto de não cabermos mais em nós mesmos, e é justamente aí que nasce um sorriso.” Da minha infância à vida profissional, talvez muita coisa houvesse se perdido. Eu não corria mais atrás de ônibus e sequer sabia quanto custava uma passagem. Nunca mais havia comido cachorro-quente no Centro de Porto Alegre. Já fazia anos que eu não sabia o que era comprar sempre o mais barato: alvejante, roupas, tênis, comida. Eu tinha o mundo, ou melhor, o consumo, na palma das minhas mãos – mas eu havia perdido alguma coisa […]

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