Crônica

Os incontáveis olhos da floresta

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Os incontáveis olhos da floresta "A Última Floresta". Foto: Pedro J. Márquez/Divulgação
Era final de abril do ano pandêmico de 2021, quando tive a empáfia de, pisando areias atlânticas, dizer: “Mar, olha bem pra mim, tu que tá aí há tanto tempo, tu que já viste tanta coisa nessa vida, olha bem pra mim e me diz o que eu preciso fazer pra essa tormenta interminável passar”.  Havíamos transferido temporariamente nossa casa para uma prainha do litoral norte gaúcho. A mudança para uma praia pouco habitada e fora da temporada de verão nos devolveu o vento na cara e os pés no chão. Para melhorar, passei alguns meses em companhia de velhos amigos de infância, parceiros das brincadeiras e aventuras mais divertidas de que eu tinha memória: o mar e as suas ondas, e um cachorro. Entretanto, todas essas maravilhas, quase inenarráveis, não estavam sendo suficientes para que desaparece dos meus dias e das minhas noites um flagelo perturbador: a insônia e seu lacaio, o medo de dormir. Eu já havia trocado o noticiário da televisão por programas de culinária e confeitaria, já não bebia mais café ou mate, só chá de camomila. Caminhava léguas e mais léguas, atravessava praias inteiras, todos os dias, com a esperança de que cansar o corpo me desligaria automaticamente, em algum momento do dia. Nada. Não conseguia dormir mais do que duas horas por noite e, nos parcos momentos em que dormia, sonhava sonhos que se pareciam com filmes sobre a Segunda Guerra Mundial, nos quais o Bolsonaro era o vilão protagonista. Decepcionante, não? Pois imaginem o inferno que era dormir mal e porcamente, com um genocida à espreita. Enfim, o dia em que enquadrei o mar já não fazia mais parte dessa jornada em que dormir vinha sendo pavoroso. No dia em que mandei o mar olhar pra mim, pior que não ter sono ou ter pesadelos com o Bolsonaro era estar em vigília. Havia uma semana, morrera um amigo meu, vítima da Covid-19. Nossa hora na fila da vacina ainda demoraria. E ele era mais jovem do que eu. Encarei o mar de frente, me deixei contemplar por ele. Inquiri-o e ele me respondeu. Do jeito dele. Os dias que se seguiram foram marcados pelo que os profissionais de saúde que me atenderam chamaram de “crises severas de ansiedade”. Somou-se à minha analista um psiquiatra, a eles um instituto de terapias sistêmicas, meditações cabalistas e uma ialorixá reikiana. Força-tarefa antimanicomial! Segui fazendo minhas caminhadas na praia, mas não dei mais assunto para o mar. Baixava os olhos quando de frente para ele.  As crises passaram, enquanto escrevia um livro, organizava outro, adotava mais dois cachorros, nos vacinávamos, votávamos no Lula para presidente e o elegíamos. Atravessamos um deserto – haja maná! Mas o deserto ainda está aí, ele nos cerca, à maneira do abismo de Szymborska. De volta à zona sul de Porto Alegre, sou vizinha, de porta e janela, de uma área de Mata Atlântica, de cerca de quinze hectares, incrivelmente próxima à urbanização atroz da Capital. Não é placidamente que esse pedaço […]

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