Crônica

Os meios e os fins

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Os meios e os fins

Dia desses, chegou a mim, via Renata Rubim (rima ruim, enfim), um vídeo em que o inclassificável (de tão talentoso) João Bez Batti citava, à beira do rio das Antas, uma frase de Picasso: “É preciso muitas décadas para alguém se tornar jovem”. O próprio Bez, mais adiante, diz que levou 60 anos para aprender a fazer a boca em suas espetaculares esculturas no basalto rijo da Serra gaúcha, mas agora ele já está com 80 anos de vida, olhando pelo retrovisor e pensando na morte diariamente. 

Por aqueles dias, eu havia lido o relato do Carlos Scomazzon sobre sua vivência com a epilepsia, e lá pelas tantas a Anajara Carbonnel Closs referiu que estava na hora de ela contar suas agruras com a deficiência. E eis-me aqui, no ano em que completarei 60 anos, para dizer que levei seis décadas para me sentir mesmo um PNE (Portador de Necessidades Especiais) ou PCD (Pessoa com Deficiência). Até então, era só usufruir das vagas de estacionamento exclusivo (ou nem tanto), graças ao selo que vem com o carro comprado com isenção de IPI e ICMS, e, também, algumas gentilezas, como a do vizinho de condomínio, que trocou a vaga da garagem comigo, para que eu ficasse mais perto da entrada do elevador, no subsolo. 

Mas como assim, Ricardo Rodolfo? Tu não teve pólio com 11 meses? Então… Tu é deficiente desde lá, né não? 

Pois então… Tudo até aqui foi prólogo. É nesse ponto que a história começa. E ela se inicia com uma sigla: SPP, que significa Síndrome Pós-Pólio.


Corta para o homem na sacada e sua solidão. Sentado em um pequeno banquinho (por quê?), ele fuma e se serve de café (ao menos parece) de uma térmica prateada. Sofre? Medita? Apenas vive? Nada sei. Apenas observo em diagonal, do alto para baixo, e percebo que ele olha para um meio pedaço de nada à frente, faz movimentos imprecisos com as mãos, vez por outra olha para baixo. Penso que talvez chore, mas será que sou eu que projeto nele as lágrimas que se ausentam dos meus olhos, trancadas na garganta? Há um silêncio à volta dele.

Talvez seja o silêncio do meu café da manhã excepcionalmente solitário que se espraia até o prédio ao lado – tem uma casa no meio, mas não a vejo, agora, então é como se não existisse, nesse momento. E se ele for filósofo, quem sabe escritor? A cena se revestiria de alguma sofisticação, não é mesmo?  Talvez seja um anônimo aposentado, quem sabe um ermitão que ninguém aguenta, em suma, um chato xarope maletão. Então ele levanta e se vai, eu me levanto e busco outro ângulo de observação da vida alheia, voyeur urbano, e miro do escritório a sacada agora abandonada, onde ficaram o banquinho e a garrafa térmica prateada. Não saberei, ao menos por enquanto, qual é a verdadeira história do homem calvo do apartamento do segundo andar do edifício ao lado da casa que ladeia o meu prédio. Nem vocês.

Enquanto (tudo) isso, o velho sino chinês pendurado na sacada telada do apartamento 203 (o que habito) balança suavemente e sussurra tilintares ao vento. Três andorinhas ou pardais passam chispando, feito estrelas cadentes, mas que sobem – então seriam ascendentes? O locutor da rádio menciona o programa jornalístico servido pela TV na hora do almoço, e lembro que preciso me certificar de quando vai ao ar o depoimento que dei há cerca de um mês, no pátio do Beira-Rio, relembrando os marcantes momentos do futebol nos anos 1970 e 80 vividos ali, naquele gigante à beira da Padre Cacique, e revistos depois, na telinha (a medida máxima de um aparelho, na época, eram 24 polegadas).

Falando em telinha e vídeos, outro dia foi ao ar um material de divulgação do livro que produzi (textos, edição e supervisão editorial) sobre um dos consultores pioneiros da cerveja artesanal no Brasil, seu Werner Emmel. Para completar, tem sido ótima a aceitação do podcast sobre o mundo da bola, bebidas e gastronomia na brasa, que lancei com dois parceiros no início de fevereiro. Como os temas de tragos e assados são minha responsabilidade direta, tenho feito no mínimo três entrevistas por semana desde então, sobre temas como marmoreio, facas e cervejas artesanais, drinques, o menarosto, a catharina sour, a carne de cordeiro, de suíno, os espumantes gaúchos, e por aí vai… Eu não paro. Mas o mais interessante é que todo esse agito vai na contramão da minha condição física. Por isso, troquei de bordão: em lugar de “Em frente: enfrente. É na luta que a gente se encontra!”, relembrando o inesquecível tema da Mangueira de 2019, agora é “Quanto menos ando, mais caminho. Mais caminhos.”


Voltando à SPP: uma síndrome pode ter dois significados, ao menos. Confiram:

1 – MEDICINA: conjunto de sinais e sintomas observáveis em vários processos patológicos diferentes e sem causa específica.

2 – FIGURADO (SENTIDO) • FIGURADAMENTE: conjunto de sinais ou de características que, em associação com uma condição crítica, são passíveis de despertar insegurança e medo.

Grifei ali em cima “sem causa específica” e “insegurança e medo”. Boa síntese sobre um treco que descobri meio por acaso. Mas se faz necessária breve retrospectiva: em fevereiro de 2020 (bem na chegada da Covid ao Brasil, registre-se), tive uma queda na entrada da garagem da casa de praia dos meus sogros, e lá se foi o meu fêmur esquerdo, perto do joelho, corrigido (em parte, como explicarei) com uma placa de uns 15 centímetros e nove pinos. Trabalho muito bem feito, diga-se, mas, dali em diante, não consegui mais firmar a perna no chão sem que o joelho se dobrasse (funcionalidade com a qual fui brindado após uma cirurgia em 1976, a partir da qual a perna esquerda ganhou papel adicional, permitindo-me caminhar pequenas distâncias sem as bengalas e ter muito mais agilidade na deambulação).

Voltemos à fratura: quem não tem a perna esquerda, caça com a direita, certo? Só até determinado ponto, porque, dali em diante, a direita também vai reclamar. E foi o que aconteceu comigo: seis meses depois da colocação da placa e pinos, e uma vez consolidada a fratura na canhota, passei a me movimentar mais – e o joelho direito, a reclamar com mais intensidade, ele que já vinha se manifestando há algum tempo, e com razão: uma ressonância que havia feito em 2019 apontou várias pequenas lesões, deformidades, estragos da idade e, também, resultado de pequenos tropeços e acidentes.

Mas havia uma outra razão para a perda de força muscular e aumento das dores na perna que sempre chamei de “a boa”: era a tal de SPP, que já vinha em curso no meu corpo há algum tempo, mas a respeito da qual tomei conhecimento em artigo publicado no blog do Dráuzio Varella, naquele semestre. Nem meu pai, pediatra aposentado, tinha ouvido falar da tal síndrome. Essa tal SPP deve ter sido a causa de, já em 2011, a junta médica do Detran ter me obrigado a usar acelerador e freio manuais no flamante Pálio que viria a dirigir – a perna direita já não dava conta, em especial de frear com força e rapidez, item essencial para a minha segurança e de todo mundo na minha volta, nas cidades e estradas da vida, certo?

E seguia no ar a pergunta: o que, raios, está acontecendo? Vai pra lá, vai pra cá, consulta médicos queridos, como o dr. Arthur Soares, faz fisioterapia com a não menos querida Beridiana (encafifada do porquê o joelho direito parecia não responder aos exercícios semanais), toma injeção de Diprospan (o famoso Betatrinta, corticoide que alivia as dores uns 20 dias). Em resumo: uma missa (isso porque estou sem plano de saúde, ok?). Até que cheguei ao fisiatra, ortopetista e traumatologista Paulo Mulazzani, especialista em SPP, ele próprio amputado da parte inferior da perna direita e deficiente, portanto. Em nossa conversa, pela primeira vez na minha vida de vitimado pela poliomielite ouvi um médico usar a primeira pessoa do plural – “Sabemos o quanto cada pequeno movimento, que para os ‘normais’ é irrelevante, para nós é sempre um esforço.” 

Não deu outra: eu tenho SPP. Até aí, ok. Mas e o futuro? E a vida no curto, médio e longo prazos? Ou “Quanto tempo tenho, doutor?”, a clássica pergunta, que, no meu caso, equivale a “Quanto tempo antes de não conseguir mais caminhar, mesmo com as bengalas?”

Respostas objetivas e de anotar no calendário não há, até porque a SPP é irreversível, e, ademais, cada caso é um caso. Mas algumas sinalizações me foram dadas:

– usar órteses do tipo KAFO, as iniciais em inglês de joelho, tornozelo e pé e que se referem a um aparelho que vai da coxa até o calcanhar e pode ser colocado e retirado com facilidade, pois é equipado com tiras de velcro. Objetivo: evitar que eu me machuque, se tiver novas quedas, porque a órtese mantém a perna esticada e diminui o risco de fratura;

– usar cadeira de rodas para deslocamentos maiores, como ir a um shopping, viajar para Paris (alô, tia Isaura!), ir ao setor de defiças do Beira-Rio (será que significa desativar a Torcida Muleta Colorada e fundar a Cadeirante Delirante Colorado?);

– emagrecer (não resolve, mas ajuda).

O pedido das órteses e da cadeira (com custo estimado em uns R$ 10 mil) pode ser feito ao SUS, que fornece equipamentos sob medida e com qualidade. Como eu até então morava em Viamão, a coisa trancou no encaminhamento para uma consulta de alta especialidade na Capital. Traumatologista, por exemplo, não existe em Viamão, ao menos para consultas via SUS, só emergências, no hospital. Só agora, no início de fevereiro, estabelecido em Porto Alegre, consegui reiniciar o processo de solicitação dos ditos cujos (obrigado, Fischer).

Quanto a emagrecer, ano passado reduzi 8 quilos de março a dezembro, aí veio a mudança para o apartamento, festas de final de ano, aniversários, alguns dias na praia (na fatídica casa da queda de 2020), e uma parte do esforço do ano anterior se foi – mas já retomei a disciplina.

Tá, mas e daí, Bueno? 

Daí que, pelo menos desde 2020, eu sinto dores todos os dias, mas não o dia todo (acabei de furar o esboço de um poema que ia cometer). Faço xixi sentado no vaso; tomo banho sentado num banquinho; caminho da cama para a mesa da sala ou da cozinha fazendo caretas; não consigo ficar parado em pé mais do que um minuto, e já tenho que me sentar; subir escadas está um suplício, mesmo dois ou três degraus; deixar o carro na garagem da Andrade Neves, perto da esquina com a General Câmara, e ir caminhando até as proximidades da Borges é inviável, sem no meio do caminho sentar na cadeira de um boteco ao lado do número 159, onde pretendia fazer (não farei) fisioterapia. Muitas coisas que fazia com naturalidade já não faço. E pensar que inúmeras vezes fui e voltei do Beira-Rio a pé, entre muitas, muitas andanças durante toda a minha vida, e até assisti a shows na pista, como o Rush, no falecido Olímpico. E pensar que…

É o que mais faço, ultimamente: pensar que… E tem ainda uma certa fadiga, cansaço, exaustão, assim, do nada, parece que as forças e a energia vital se vão. Não sei, está na lista de possíveis decorrências da SPP, mas talvez se confunda com um ansiolítico que estou tomando há uns oito meses. Dura horas, passa, volta, passa de novo. Por tudo isso é que, lá no começo, disse que levei 60 anos para me sentir, realmente, como deficiente. É por agora que começa a verdadeira saga, o desafio de fato, para mim e para meus familiares mais próximos, mas também para aqueles amigos que sempre me viram por aí a mil, tanto no aspecto anímico quanto de movimentação mesmo.

Sagitariano, meio homem mirando o infinito, meio cavalo com as patas no chão, dado a ver sempre o copo meio cheio (e beber em seguida, se for coisa boa) e vocacionado para aventuras – mas também e muito fortemente estimulado a me reinventar, em especial pela amada filha Júlia, que era pra ser minha futura herdeira de jornalismos e literatices, mas é, já agora, uma parceira de aprendizados e ensinamentos que trilha uma jornada muito própria e talentosa em Sampa –, e ainda no embalo dos distanciamentos forçados pela Covid e suas cepas, acabou que embarquei, como já mencionei anteriormente, numa nave maluca no formato de podcast chamada Clube FTA – Futebol, Trago & Assados. Na tripulação, o grande ser humano que é o Jorge Alberto Bianchessi Soruco e o animadaço Paulinho Trindade, sem falar nos competentes assessores Talita Jaques, pilotando as redes sociais (@clubefta), e Kleber Bola Saboia, nas pick-ups do Estúdio Gaia, junto com o Pavão. Em paralelo, sigo contando (menos do que gostaria, tempos bicudos) histórias de pessoas físicas e jurídicas: ambas têm alma, acreditem, e precisam da palavra para revelarem-na. 

Mas o fato é que, repito, sinto dores todos os dias, mas não o dia todo. Isso muda a vida de uma pessoa. E foi pela mesma razão que meu lema, já citado, mudou para:

Quanto menos ando, mais caminho – mais caminhos.

E essa parte está só começando. O Flavio Ilha, baita jornalista e escritor, e também empreendedor, com a valorosa Diadorim Editora, sinalizou que poderá ter interesse em publicar meu livro de estreia na poesia, o sonhado Gaveta de Guardados. Só a sinalização já é um atestado de que alguma coisa boa devo estar poemando. A ver. O pretenso livro, a propósito, deu origem a um podcast realizado em 2020, com recursos do Fundo de Apoio à Cultura do Governo do Estado (“Gaveta de Guardados – Poesia para Ouvir e Sentir”, disponível no SoundCloud), no qual recito poemas de minha autoria, mas também de nomes consagrados de nossa literatura, como o xará Ricardo Silvestrin, Lais Chaffe, Mar Becker, Maria Alice Bragança, e por aí vai.

Síntese da coisa toda: ando meio chateado, meio feliz, meio assustado, meio entusiasmado, meio triste, meio pilhado, meio cheio (de tudo, desse país, do obscurantismo) e meio vazio, esperando para me encher de novo da plenitude que é minha marca desde sempre. E buscando os meios para tal. No meio do caminho, nunca houve tantas pedras. Mas também nunca houve tantos sons, tanta poesia, tantas coisas para contar e viver, tantas gentes por conhecer. Tanta vida para viver – e que seja eterna enquanto dure.

Para a Fernanda e a Isabela, com pitadas de um amor inenarrável.
Para o Bruno e para a Júlia, distantes, mas sempre tão perto.


Ricardo Bueno é jornalista e escritor

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