Crônica

Página reaberta

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Página reaberta Jair Krischke (Foto: Carlos Caramez))

A impunidade para militares brasileiros suspeitos de cometerem crimes de lesa-pátria pode estar com os dias contados. O gaúcho Jair Krischke, aos 84 anos, histórico ativista e militante na defesa dos direitos humanos, fundador e presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos,  acompanhado do arquiteto, artista plástico e escritor argentino Adolfo Pérez Esquivel, 92 anos, Prêmio Nobel da Paz (1980) e presidente honorário do Serviço Paz e Justiça na América Latina, protocolou  em novembro  de 2021, no Juizado Federal de Lomas de Zamora, na grande Buenos Aires, uma denúncia da prática de crime de lesa-humanidade pelo sequestro, por forças militares e policiais do Brasil e da Argentina, do jornalista Edmur Péricles Camargo (1914-1971), que foi filiado ao PCB e  depois participou, ao lado de Carlos Marighella, da  Aliança Libertadora Nacional (ALN), além de fundar o M3G (Marx, Mao, Marighella e Guevara).  Ele também foi investigado como desaparecido pela Comissão Nacional da Verdade, criada em 2011, no Brasil. Edmur Camargo foi retirado à força, dia 16 de junho de 1971, por militares argentinos, de um avião da LAN CHILE (hoje LATAM Airlines Chile), no voo 317, procedente de Santiago, onde estava exilado, e que havia aterrissado às 16 horas no aeroporto internacional de Ezeiza, distante 40 km de Buenos Aires, com destino a Montevidéu. Ele foi levado até o aeroporto de Palermo e no mesmo dia colocado num avião da Força Aérea Brasileira, que o levou clandestinamente até a base aérea do Galeão, no Rio de Janeiro, e nunca mais foi visto.

Segundo declarou Jair Krischke, em entrevista à Parêntese, “o processo está em andamento, e agora nós pedimos ao estado argentino que informe quem era o pessoal que estava de serviço na base aérea e quem autorizou o ingresso do avião da FAB no espaço aéreo argentino. Também solicitamos que a LAN Chile apresente o registro do diário de bordo feito pelo comandante do voo com a lista de passageiros. A sentença do julgamento está prevista para o veredito final sair dentro de 2 anos. Nós trabalhamos muito para que todos os documentos que sustentam a acusação sejam considerados próprios pela justiça Argentina”.

O desaparecimento de Edmur Camargo fez parte da Operação Condor, que envolveu, nas décadas de 70 e 80, oito países do Cone Sul apoiados pelos EUA, com a participação e colaboração de militares, serviços de inteligência e diplomatas, com o objetivo de planejar em conjunto o sequestro, a tortura e o assassinato de lideres políticos e sindicais latino-americanos. A Operação Condor surgiu formalmente em 1975, no Chile, mas o sequestro de Edmur Camargo, em 1971, assim como outros casos que já foram documentados, demonstram claramente que a operação já funcionava antes disso.

A denúncia apresentada à justiça argentina é fundamentada por robustos documentos secretos obtidos no Brasil pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos e na Argentina pela Comisión Provincial por la Memória, presidida por Esquivel. A luta não é só contra a impunidade, mas também pela construção da memória latino-americana e o restabelecimento da verdade histórica.

Com provas cabais e definitivas, depois de longas investigações, Krischke tenta obter na Argentina o que a justiça brasileira e os militares sempre negaram e se recusaram a fazer: responsabilizar os autores de crimes praticados durante o período da ditadura militar brasileira. Nada muito diferente do que acontece neste momento no Brasil, quando mais uma tentativa de golpe foi impetrada contra um governo eleito democraticamente pela maioria dos brasileiros, num flagrante   desrespeito à nossa Constituição que contou com o apoio e a participação dos militares.

Será a segunda vez na história que os militares brasileiros enfrentarão um julgamento por um crime de lesa-humanidade. O primeiro aconteceu na Itália, entre 1999 e 2021, com a condenação de 12 militares e do delegado gaúcho Marco Aurélio da Silva Reis. A corte italiana, na época, declarou que seria aplicada uma sentença de prisão perpétua para todos os envolvidos. O objeto da sentença se perdeu em função da morte dos acusados, afirmou Jair Krischke.

No momento em que se discute o papel das forças armadas no Brasil, é muito oportuno falar da Operação Condor e da atuação e participação dos militares em nosso processo político, ao longo da história.  A impunidade dos militares golpistas é sempre um álibi e encoraja extremistas de extrema direita para novas aventuras ditatoriais, sempre com consequências trágicas para a sociedade civil.

Segundo Krischke, essa não é uma boa notícia para o governo Bolsonaro, que também pode ir a julgamento, tanto no Brasil como em Cortes Internacionais de Direito, por diversos crimes cometidos. Nós temos a possibilidade de levar todos os envolvidos em crimes de lesa-humanidade às barras dos tribunais para que respondam pelos seus atos, e não devemos perder essa oportunidade histórica. Antes de virar esta página da nossa história precisamos ler o que está escrito nela.

O Brasil é o único país da América Latina que não cumpriu as determinações do processo de anistia “ampla, geral e irrestrita”, deixando sequelas trágicas para nossa história. Países como o Uruguai, Argentina e Chile, entre outros, criaram Centros de Memórias e Museus para registar e acabar com a impunidade que se perpetua, entre nós, até os dias de hoje.  Na Argentina, por exemplo, mais de 400 militares foram julgados e condenados, e estão cumprindo pena pelos seus crimes cometidos durante a ditadura argentina, que ocorreu entre 1976 e 1983. O general golpista Jorge Rafael Videla, que cometeu crimes de lesa-humanidade, morreu na prisão, enquanto no Brasil nenhum policial ou militar foi julgado ou punido. Durante o governo Bolsonaro o terrorismo foi instituído e normalizado como uma política de Estado. A destruição do país, comandada pelo mito inominável, parece não ser o suficiente para mobilizar nossa sociedade contra ditaduras. Mais uma vez corremos o risco de cometer um assassinato da nossa memória histórica e de normalizar a impunidade como sendo uma forma de governar.

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