Crônica

Pobre andorinha

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Pobre andorinha Foto: Marina M/Pexels

Acordo e abro o computador. Leio uma crônica em que a autora diz: “Não consigo lidar com problemas que são muito maiores do que eu”. Releio, tentando entender que tamanho tem “eu” — no caso, ela. Entendo que o “problema maior” é o atual estado do planeta. Realmente, não há muito que uma só andorinha possa fazer. Os verões serão escaldantes, com o outro lado do planeta congelando — e nós, quem sabe? nos equilibrando nos fios. 

Saio de casa. Vou jogar o lixo reciclado na lixeira da calçada — já que o caminhão da companhia de lixo me encontra dormindo. Meu portão, a calçada, o lixo, a lixeira, quem passa, os pássaros no céu, a chave no meu bolso: tudo é “maior” do que nós. Acordar é participar da vida coletiva. Escovar os dentes. Sair de casa. Fazer uma chave com o chaveiro de confiança. Quando não é político? Quando, seguindo a linha racional destas ações, um gesto não desdobra problemas imensos, muito maiores do que nossas vidas? 

O primeiro acontecimento que me levou a pensar no resto do mundo foi quando tinha sete anos e fui passar férias na casa da minha avó. Pedi à minha mãe que cuidasse dos meus peixes, mas meus irmãos e o trabalho fizeram com que ela colocasse o aquário em cima da geladeira e o esquecesse lá. Ao voltar, ela me presenteou com um exemplar de A mulher que matou os peixes, de Clarice Lispector. Explicou, sentida, que os peixes haviam pulado lá de cima por fome. Lembro de examinar algum tempo a geladeira. Era tão imensa que me surpreendi de minha mãe ter exilado os coitados lá perto do teto, lugar que nem conseguia ver (só se me colocassem numa escada). Ainda na idade do pensamento mágico, achei meus peixes uns heróis. 

Fiquei chateada com a mãe, porque não fez o que pedi. O livro de Clarice é que descobri triste. Minha mãe logo me deu presentinhos, que aceitei — entre eles, um pintinho comprado na feira livre, que tomou chuva e minha tia tentou salvar dando do próprio uísque num conta-gotas (não é preciso que lhes conte o resultado). 

Pesquiso mais sobre a autora. Ela mesma é um mote frequente em seus textos. Mas o gênero crônica não seria um passeio, um argumento pelo que se vê, ouve, imagina? Bem, muitas coisas podem ser chamadas de crônica, sempre abrangentes, mas, planas. 

Em comum, a autora e eu vivemos insatisfeitas. Somos mulheres, moramos em grandes cidades, contemplamos a literatura como profissão. E ela falou do seu estado de espírito, mais saudável que o meu, ao não querer lidar com “tudo”. Eu penso nos problemas “maiores”. Tento lidar com eles. Assumo que sou hipócrita. Não desvio o dedo para culpar ninguém. Eu, eu mesma, finjo que não vejo coisas todos os dias. Isso não me tira a imensa empatia e os sérios momentos de angústia. Mas também não me tira o sono. 

Agora corto cenouras para o meu almoço, ainda com a crônica da colega na cabeça. Se pudesse ouvir as cenouras, elas gritariam? Sim. Todos os seres do planeta clamam por novas relações. 

O planeta, tão imenso e cheio de problemas quanto minha geladeira de criança. 

A vantagem? Somos seres sociais. Bilhões que não sobrevivem sem o outro. Bilhões cheios de limitações. Mas pensantes. Ninguém sabe do nosso futuro — tudo ao nosso redor, todas as coisas, menores ou maiores que nós, estão aí, por serem compreendidas e respeitadas. 


Maria Silvia Camargo é jornalista e autora (mestre pela PUC-RJ). Acredita que memória é ficção e escreve sobre isso no medium. Publicou três livros de jornalismo — 24 Dias por hora, quanto tempo o tempo tem?, é um ensaio sobre o tempo e a memória. Tem dois romances, Quando ia me esquecendo de você (finalista prêmio SP Literatura 2013) e Leite de Cadela. É da turma 2020 da Oficina literária da PUCRS. Tem, prontíssimo, o livro de contos O buraco do mundo (inédito).

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