Crônica

Poliamor literário

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Poliamor literário Foto: Pixabay/Pexels

Tenho uma amiga que mantém relacionamentos fora do casamento. Tudo devidamente acordado com o marido, bem entendido. Pessoas entram e saem da vida do casal, mas os dois continuam juntos – e apaixonados. Para monogâmicos contumazes, a coisa toda parece um pouco complicada de manejar no dia a dia, mas, segundo ela, tudo é uma questão de organização (para que ninguém seja surpreendido por uma atitude fora do combinado) e lealdade (que é a fidelidade sem cabresto). 

“Mas vocês nunca ficam com ciúmes?“, perguntei, com monumental obviedade. Com cara de quem já respondeu mil vezes à mesma pergunta, ela garantiu que não. Todas as cartas estão na mesa e ninguém precisa se mortificar com a imaginação. E se um dos dois se apaixonar por outra pessoa e não quiser voltar mais? Bom, pode acontecer, tudo pode acontecer, admitiu minha amiga, mas um grande amor sustenta imprevistos. Ou já não é um grande amor.

Para tudo. Esta não é uma conversa sobre casamento aberto, poliamor, amores líquidos. Queria falar sobre fidelidade, constância, compromisso, mas em um contexto bem diferente. Em um mundo saturado de estímulos ao alcance da mão (“clique aqui e compre agora!”), como ficar meses, ou mesmo anos, com o mesmo livro na cabeceira? Como resistir ao apelo da variedade quando o cardápio de distrações é farto e o algoritmo conhece nossos gostos e fraquezas muito melhor do que nós? 

Minha tese é: nos dias de hoje, atravessar um livro de mais de mil páginas é mais ou menos como manter um casamento longo – monogâmico ou não. Se você se distrair com o excesso de opções em volta, é possível que perca o fio da meada e nunca mais volte. Se fechar os olhos para tudo que aparece nas vitrinas, corre o risco de se sentir aborrecido, sufocado, monotemático. Preciso confessar que tenho mais experiência com leituras que exigem renúncia a tentações de diferentes naturezas do que com casamentos que atravessam décadas. Ou seja: não garanto que arranjos conjugais não convencionais salvem casamentos em perigo, mas se o seu problema for falta de paciência para a monogamia literária, talvez as duas regras básicas dos relacionamentos poliamorosos possam ajudar: organização e lealdade. 

Você está lá, atravessando o Liso do Sussuarão na companhia de Proust, Tolstoi, Musil, Dostoievski ou do próprio Rosa, quando sente aquela comichão mental de descobrir se o cara que ganhou o Nobel vale mesmo a pena ou se aquela bagunça toda no Oriente Médio tem alguma chance de acabar bem. Se o leitor se inclina para a monogamia literária, pas de problème. O Oriente Médio não vai sair do lugar, e o Prêmio Nobel também não vai a lugar nenhum antes de outubro do ano que vem. Não é o meu caso. Por dever de ofício e temperamento, sou uma poliamorosa literária. 

Para não viver cercada de livros lidos até a metade, precisei desenvolver um método (“organização”). Descobri que, se você quer ler um livro de mil páginas, ou mais, mas não consegue segurar sua curiosidade sobre assuntos aleatórios ou momentosos, estabelecer uma meta de páginas ajuda a não perder o foco. Atende-se à piscadela da novidade, sem culpa, mas com o compromisso íntimo de voltar ao livro que ficou de lado. Desse jeito, consigo me manter fiel (“lealdade”) ao meu eu do passado, aquele que encarou a primeira página do tijolão cheia de promessas de fidelidade e amor eterno, sem abrir mão dos impulsos e da vontade de variar o cardápio de vez em quando. Quem nunca. 

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Pessoa: uma biografia, com suas 1160 páginas, é o tijolão que têm exigido organização e lealdade da minha parte nos últimos meses – estou quase lá, pessoal, torçam por mim. 

Fernando Pessoa publicou apenas um livro em vida (Mensagem). A maioria dos poemas que vieram a público em sua época foram publicados em revistas literárias que ele ajudou a conceber. Uma ou duas dessas publicações tiveram alguma repercussão, outras mal chegaram aos leitores e já sumiram das bancas. Mas o que eu queria comentar aqui é que cada uma dessas revistas que o poeta imaginou nasceu da vontade de sacudir a pasmaceira lusitana do início do século 20. Pessoa sonhava com um país mais inteligente, mais interessante, mais consciente de si e de suas potencialidades – e as revistas eram um primeiro passo para chegar lá. 

A Parêntese já é mais longeva do que qualquer uma das publicações que Fernando Pessoa ajudou a criar, mas os sonhos que colocaram esta sua revista em pé, há quatro anos, não são muito diferentes daqueles que moviam o poeta português em suas aventuras editoriais: refletir, revelar novos talentos, trocar ideias, puxar conversa com o leitor, lembrar o passado, imaginar um futuro. 

Ao chegar na edição 200 revista, os leitores só têm a agradecer: a Parêntese nos ajuda a sonhar o Brasil. 

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