Crônica

Projetos e omissões

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Projetos e omissões
“A crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto.”

A célebre frase do Darcy Ribeiro é tão brilhante que por vezes parece nos cegar para o fato de que este país sempre teve muitos projetos, cada qual mais terrível do que o outro. Afinal de contas não foi por crise, e muito menos por acaso, que etnias indígenas inteiras desapareceram da existência sobre este solo, assim como também não é por crise ou acaso que as poucas etnias sobreviventes padecem até hoje o mais obsceno desamparo. Neste exato momento há um genocídio em curso, exterminando os negros nas periferias das grandes metrópoles brasileiras, o que também não ocorre por crise ou acaso. Há o encarceramento em massa, que mantém o sistema prisional constantemente à beira do colapso, e quando se traça o perfil dessa imensa população carcerária, percebendo-se que a grande maioria dos presos são pretos ou pardos e quase a totalidade são pobres, torna-se impossível explicar esse contexto por crise ou acaso. Também é impossível explicar por crise ou acaso o fato de o Brasil manter-se, por anos consecutivos, no topo do ranking dos países que mais matam a população LGBTQIA+. 

Não é por crise ou acaso que o Brasil é o quinto país com maior número de feminicídios. Não é por crise ou acaso que as mulheres estatisticamente ganham menos dinheiro do que os homens no Brasil, desempenhando a mesma função que eles e com o mesmo grau de instrução que eles. Não é por crise ou acaso que ano após ano as estatísticas vêm mostrar que o povo brasileiro lê pouco, isto é, que apenas um percentual muito pequeno da população brasileira chega a desenvolver o hábito da leitura ao longo da vida. Não é por crise ou acaso que a maior parte dos trabalhadores brasileiros, que recebem até dois salários mínimos, não podem, com essa renda, garantir o lazer da família, muito menos custear educação de qualidade para os filhos e menos ainda comprar uma casa digna. Não é por crise ou acaso a falta de saneamento básico que assola milhões de pessoas Brasil afora. Não é por crise ou acaso a péssima distribuição de renda do país. Não é por crise ou acaso a violência policial. Não é por crise ou acaso a ausência de negros em espaços de poder. Enfim, não é por crise ou acaso o próprio Brasil, tal como é. O Brasil, tal como é, resulta de um conjunto de projetos escabrosos, todos muito bem definidos e facilmente identificáveis.

Por exemplo, quando se discute os privilégios dos brancos no Brasil de hoje, é muito comum, pelo menos entre as pessoas sensatas, reconhecer as práticas históricas do estado brasileiro que resultaram nesses privilégios. Os mais de quatrocentos anos de escravização da população negra talvez constituam o caso principal, mas certamente não o único. Mesmo após a abolição os negros foram impedidos de frequentar escolas, enquanto os imigrantes brancos recebiam generosos incentivos do governo para transferir a vida para o Brasil. Esse, porém, é apenas um lado da moeda: o mais evidente. Para além desses projetos ativos e perversos, o Brasil também pecou muito, e ainda peca muito, por omissão. Afinal de contas, “O silêncio diante do mal é em si mesmo um mal. Não falar é falar. Não agir é agir”, como diria Dietrich Bonhoeffer. Em outras palavras, a ausência de uma determinada política pública não deixa de ser em si mesma uma política pública.

[Continua...]

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