Crônica

Questão de lógica

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Questão de lógica Desembarque de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro em 1500. Oscar Pereira da Silva. 1900, Museu do Ipiranga.

Em mil e quinhentos, quando os europeus chegaram às terras que receberam nomes diversos – Pindorama, Terra Nova, Vera Cruz, Santa Cruz, etc – trataram logo de fazer aquilo que consideravam o mais adequado. É óbvio que adequação é sempre uma questão de perspectiva, e, nesse caso, o que era adequado para os invasores era absolutamente  inadequado para os residentes originais. A flexibilização de percepções desse tipo costuma receber o nome de relativismo cultural – mas os cabraletes, definitivamente, não conheciam este conceito antropológico. Nesse caso, acharam por bem civilizar os povos autóctones.

Então, imagina só: antes da civilização chegar, das diversas culturas que residiam na grande reserva natural, nenhuma delas tinha problema com imposto de renda e nem com o trânsito trancado às 18h na Castelo Branco – que nem por um caralho deixo de chamar de Avenida da Legalidade. Aliás, também não precisavam discutir se uma avenida poderia receber um nome que marca a democracia, ou deveria ser nomeada com a alcunha de um ditador sanguinário. Consegue imaginar algum representante político de um povo originário saindo por aí, fingindo dar machadada em árvore, só pra dizer que a empresa de poda local não fez seu trabalho? E ainda por cima, o pintor mais famoso da aldeia atrás dele, registrando cada machadada fajuta e patética, porque logo em seguida haverá disputa de cacicado, e o homem não quer ser lembrado como um mau gestor que deixa as residências sem serviços básicos? Não, não, não… A culpa dessa bagaça toda é do Cabral, sim, Raulzito!

No fim das contas, os problemas atuais, em sua maioria, são uma questão de civilização. E a civilização não tem nada de lógica. Já tentou entrar num avião pagando a passagem mais barata? Você vai ficar esperando horas, porque sua poltrona é número 723; todos entram pela porta frontal, mas os bonitos com cartão GoldPlatinumMasterBlackINFINITE! vão passar na sua frente. Mas o quê é isso, gente? Entra primeiro quem sentará nas últimas poltronas, ao fundo da aeronave. Isso, sim, seria lógico. Mas não, a civilização diz que se você tem mais dinheiro, tem direito a atrasar todo o voo e ficar sentado por quarenta minutos numa poltrona desconfortável, rindo de quem pagou a metade do preço e vai no mesmo avião que você. O que tem ainda menos lógica é alguém reclamar de uma situação tão fútil, que não chega a atingir praticamente nem 5% da população em nosso continente (esse número foi inventado por mim mesmo). Você percebe o que a civilização faz com a gente?

Deste fuzuê todo, o que me intriga é o fato de que a civilidade se tornou a bandeira principal da vida contemporânea. A esquerda brasileira, por exemplo, se agarra à noção de estado civil como purpurina no cangote de folião – tá aí um dos poucos acertos da civilização, o Carnaval; talvez este seja o motivo de representantes eleitos insistirem em chamá-lo de selvageria, como se fosse uma ofensa. Ao defendermos a posição civil, esquecemos que Educação Moral e Cívica era uma das formas de doutrinação no período ditatorial brasileiro. Esquecemos que a frase “bandido bom é bandido morto” só pode ser cometida porque se considera o bandido como o selvagem, a ser eliminado para o bem da civilidade. A oposição entre selvageria e civilização está marcada por outro duplo: não-humano e humano. Consideramos humano aquilo que é civil. E tudo o que não condiz com o humano não merece atenção, não merece viver e, quando morrer, não merece nome de rua. 

Parece que, por se tratar de algo supostamente lógico, desejar a própria civilidade é a forma de ser reconhecido pelos humanos como um igual. Todavia, ser um igual é também espelhar os aspectos mais asquerosos da civilização. Não é um jogo em que se escolhe o que se ganha e o que se perde. Escuto muitos casos em que o sujeito implora por formas de se tornar mais adaptado ao modelo de laço social do ocidente. Venho teorizando isso junto ao grupo de Psicanálise Amefricana, nomeando essa formação inconsciente a partir do conceito de Supereuropeu – uma instância psíquica em forma de voz, incômoda, que nos obriga a fazer o que o mestre mandou, tal qual na brincadeira infantil ou na música do Belchior. 

Esta voz, feroz e obscena, funciona no dito “civilizado” com a força de uma verdade indubitável. Se na teoria convencional da psicanálise, o “supereu” funciona no sujeito como a internalização de palavras e imagens em circulação na cultura sob a forma de lei, a imposição da civilização na amefricanidade é a marca de nossa própria versão, que venho chamando de supereuropeu – brincando na cara desse perigo, que é cutucar os sacralizados conceitos psicanalíticos. É que a cada dia que passa, a civilização se torna um verdadeiro mestre, e o verdadeiro e grande perigo está no mestre incorporado, escondido sob a máscara de “indivíduo civilizado”. 

Portanto,  selvagens do mundo: uni-vos!


Evandro Machado Luciano, psicanalista junto à Après Coup – Psicanálise e Poesia. Membro do Grupo de Estudos em Psicanálise Amefricana na mesma instituição. Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Especialista em Ensino de Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas. Email: [email protected].

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