Crônica | José Falero

Racista, não-racista e antirracista

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Racista, não-racista e antirracista

“Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista.”

A princípio, esse raciocínio parece romper com um paradigma composto de apenas duas posturas possíveis (“racista” e “não-racista”) para estabelecer um modelo de reflexão ternário, onde a postura “antirracista” surge como terceira possibilidade, distinta e independente das duas anteriores. Contudo, o que parece escapar às pessoas, especialmente às pessoas brancas, é que, segundo o próprio enunciado, apenas uma dessas três posturas é aceitável no âmbito do efetivo combate ao racismo, enquanto as outras duas não o são, e eis aí a evidência de que ainda estamos em um modelo de reflexão binário: de qualquer forma, existem duas, e apenas duas, posturas possíveis: a postura aceitável, que efetivamente combate o racismo, e a postura inaceitável, que não o combate. Dessa perspectiva, a postura “racista” e a postura “não-racista” apresentam-se como variações de uma mesma coisa (são duas maneiras distintas de se estar em conformidade com racismo), enquanto a postura “antirracista”, em contraste, opõe-se a elas, sugerindo a efetiva desconstrução das estruturas sociais que privilegiam brancos em todas as esferas.

O fato de a postura “racista” ser fundamentalmente ativa talvez incline a maior parte de nós a considerá-la mais perversa do que a postura “não-racista”, que é, em essência, passiva. Mas, quando reflito sobre essas duas posturas, sempre chego à conclusão de que são, pelo menos, igualmente perversas. A omissão é paradoxal por natureza: não praticar ato algum é também praticar um ato. E, assim, não praticar ato algum no sentido de desconstruir o racismo estrutural, que é perverso, é também praticar um ato: um ato em favor da sua manutenção e, portanto, um ato perverso. Contudo, embora a postura “não-racista” contribua tanto para a manutenção do racismo estrutural quanto a própria postura “racista”, a primeira, ao contrário da última, é agravada por sua sutileza e pelo fato de ser socialmente aceita. Apesar de sabermos o quão nociva e perversa é a postura “não-racista” que não chega a ser “antirracista”, encontramos dificuldades em atacá-la e, ao ousarmos fazer isso, muitas vezes terminamos mesmo repreendidos (inclusive por nossos próprios pares, em alguns casos). Não há sequer leis que coíbam essa postura. Tão indecente e perverso quanto um “racista” declarado, o cidadão “não-racista” que não chega a ser “antirracista” atravessa incólume as relações sociais, inclusive atrevendo-se a participar dos debates acerca da problemática racial.

Quando um professor branco percebe-se integrante de um quadro de professores constituído apenas por brancos como ele próprio ou majoritariamente por brancos como ele próprio, deveria entender que, para início de conversa, nem mesmo deveria estar ali, e que é absolutamente condenável a sua permanência naquele lugar, se não de uma perspectiva legal, pelo menos de uma perspectiva moral. E, claro, o mesmo serve para políticos brancos, escritores brancos, editores brancos, cineastas brancos, repórteres brancos, enfim, brancos ocupando qualquer espaço de poder de maneira total ou majoritária. Deveriam sair dali. Deveriam abrir mão do privilégio de estar ali — privilégio, esse, que, longe de refletir mérito, lhes foi concedido justamente pelo racismo estrutural. Não há nada que possam dizer, não há discurso que possam adotar que contribua efetivamente no combate ao racismo: sua presença ali, naquela determinada posição de poder, já é a manifestação do próprio racismo.

É dessa perspectiva que percebo a postura “não-racista” que não chega a ser “antirracista” tão perversa e digna de repúdio quanto a própria postura “racista”, se não ainda mais perversa e digna de repúdio. Porque, dado o nosso contexto social atual, a postura “não-racista” que não chega a ser “antirracista” consegue algo que nem mesmo a própria postura francamente “racista” consegue: naturalizar o privilégio branco. Da mesma forma que um branco “não-racista” respira sem sentir qualquer culpa, transpira sem sentir qualquer culpa e espreguiça-se pela manhã sem sentir qualquer culpa, assim também recebe e gasta seu bom salário (recebido e gasto apenas por pessoas brancas ou majoritariamente por pessoas brancas) sem sentir qualquer culpa, faz as refeições em bons restaurantes (onde só há brancos ou a maioria das pessoas são brancas) sem sentir qualquer culpa, goza das comodidades do condomínio bem localizado onde mora (habitado apenas por pessoas brancas ou majoritariamente por pessoas brancas) sem sentir qualquer culpa. Faz tudo isso sem sentir qualquer culpa, claro, porque não se dá conta de que é o racismo estrutural que lhe provê tudo, inclusive a possibilidade de usar o seu lugar de poder para falar ou escrever (inutilmente) contra o racismo estrutural.

A postura “não-racista” que não chega a ser “antirracista” — postura do branco privilegiado que não abre mão dos próprios privilégios, embora eventualmente os condene de maneira verbal ou por escrito — é uma contribuição direta para a manutenção do racismo estrutural.

“Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista.”

Concordo. Não basta dizer que os privilégios brancos são injustos. É preciso abrir mão deles.

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