Crônica

Só você e o negro

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Só você e o negro

Você esperou toda a vida por esse momento. Quantas vezes sonhou com isso? Um negro à sua mercê, rendido, manietado. Quantas vezes imaginou encher um negro de porrada, mas não pôde, porque ele reagiria e você poderia se daria mal. Agora não: é você e ele, num local ermo. Tem gente em volta, mas ninguém vai reagir porque é só um negro. Você não o conhece, mas nem precisa. É um negro como os outros, de forma que você o odeia. E você está autorizado: pela firma de segurança que o treinou para essas ocasiões (talvez tenham falado outras coisas como evitar conflitos, usar a cabeça, agir com prudência, mas você não prestou atenção, porque escolheu esse emprego exatamente pela possibilidade de dar porrada em alguém, de preferência, num negro); a direção do super não vai se responsabilizar, só pede para que essas coisas aconteçam longe dos caixas, se não alguém pode desistir das compras e isso é ruim para os negócios.

É só você e o negro. Minto: você, o negro e o colega que se conforma em ser miserável coadjuvante, e só vai segurar o negro para você enchê-lo de porrada. Esse negro, que que tá pensando? Entrar no super e dar uma de bacana? É hoje! O grande momento. Bater num negro que não sabe o seu lugar. E você, com seus bíceps artificiais à base de muito anabolizante, você com seu físico de academia, você com a covardia própria dos racistas, você bateu nele exatamente como seus heróis do MMA, do UFC, batem nos outros. Você está no octaedro do MMA, numa luta sem gongo, uma luta contra o adversário manietado para você bater, numa luta desigual, mas você não liga pra essas frescuras, coisa de maricas. Você deu socos, deu pontapés, bateu, bateu e bateu. Não tem gongo. Tem o ódio. Tem os gritos. E você batendo, descontrolado. Lá pelas tantas, ele apagou e você ficou irritado, porque queria bater mais. Queria bater naquele negro pelo resto da noite, pelo resto da vida, pelo resto de sua existência de valentão medíocre, insossa, desprovida de alma, de gentileza, de empatia, de humanidade.


Rafael Guimaraens é jornalista e escritor. Entre os títulos publicados estão 1935, A Dama da Lagoa, Aguas do Guaíba e O Sargento o Marechal e o Faquir, todos pela Libretos.

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