Crônica | José Falero

Sweet Child O’ Mine: segunda parte

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Sweet Child O’ Mine: segunda parte

Contudo, ao contrário do que eu esperava, a oficina de música se revelou um espaço de aprendizado bastante rico. Foram necessários apenas quatro ou cinco encontros para que eu perdesse o medo de passar três horas na presença dos poucos desconhecidos que integravam a turma junto comigo e com a minha irmã; depois disso, digo com orgulho, consegui até desenvolver o hábito de lhes dar boa noite e trocar com eles pequenos comentários, tais como “hoje tá bem frio” ou “alguém podia capinar isto aqui”. Outra coisa que contribuiu, e muito, para que eu pudesse desfrutar plenamente da oficina foi o fato de que a minha mãe, a duras penas, deu um jeito de me comprar um cavaquinho. O meu primeiro cavaquinho. Um Tonante pré-histórico com braço mais grosso que o do Arnold Schwarzenegger, verdade, mas era um cavaquinho. O meu cavaquinho!

A minha mãe é foda.

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Contudo, ao contrário do que eu esperava, a oficina de música se revelou um espaço de aprendizado bastante rico. Foram necessários apenas quatro ou cinco encontros para que eu perdesse o medo de passar três horas na presença dos poucos desconhecidos que integravam a turma junto comigo e com a minha irmã; depois disso, digo com orgulho, consegui até desenvolver o hábito de lhes dar boa noite e trocar com eles pequenos comentários, tais como “hoje tá bem frio” ou “alguém podia capinar isto aqui”. Outra coisa que contribuiu, e muito, para que eu pudesse desfrutar plenamente da oficina foi o fato de que a minha mãe, a duras penas, deu um jeito de me comprar um cavaquinho. O meu primeiro cavaquinho. Um Tonante pré-histórico com braço mais grosso que o do Arnold Schwarzenegger, verdade, mas era um cavaquinho. O meu cavaquinho!

A minha mãe é foda.

E foda também mostrou-se o professor Fausto ao longo dos encontros. O cara me fez gostar de bossa nova! Tudo bem que no futuro, anos mais tarde, por uma série de questões que provavelmente não vêm ao caso aqui, eu voltaria a repudiar os corcovados da vida, mas o fato é que naquele momento o Fausto realizou um feito tão positivo quanto improvável: abriu-me para o novo, para o diferente, para os gêneros e estilos com os quais eu não estava acostumado.

O objetivo da oficina nunca foi segredo. A ideia era que os jovens selvagens da Lomba do Pinheiro tivessem algum contato com música que prestasse. É inevitável. Dado o estado das coisas, creio que toda descentralização de cultura sempre terá um pouco de evangelização. Mas também acredito que seja possível sair íntegro de um processo desses — ou quase.

Além das pequenas sequências de acordes que eu já tinha aprendido com o pessoal do Julinho, a oficina introduziu mais quatro ou cinco músicas igualmente simples no meu repertório, das quais Trem das onze era o único samba. Foi o Fausto quem me ensinou a tocá-las, claro. E quando eu não sabia como se fazia um determinado acorde, ele pegava o cavaquinho da minha mão e me mostrava. Foram muitas ocasiões assim, e elas me causavam profundo estranhamento, já que o Fausto não sabia tocar cavaquinho. Aquele estranhamento, hoje sei, era o meu primeiro flerte com a teoria musical: eu desejava compreender como podia ser possível para alguém que não tocava cavaquinho montar qualquer acorde no instrumento, bastando, para isso, conhecer a afinação das cordas e, me parecia, fazer alguns cálculos matemáticos mentalmente.

Já em um dos primeiros encontros o Fausto tinha contado que passaríamos o ano todo ensaiando algumas músicas para tocá-las ao vivo, com plateia e tudo, no Teatro de Câmara Túlio Piva, junto com o povo das oficinas ministradas noutros cantos da cidade; além disso, a apresentação seria gravada em CD. Muitos olhos brilharam com a explicação, incluindo os olhos da minha irmã, que tinha nascido para os palcos e estava naquela oficina apenas cumprindo tabela, uma vez que já cantava maravilhosamente bem desde sempre. Eu, de minha parte, só o que consegui sentir foi pavor ao me imaginar empunhando um cavaquinho diante de um público. Contudo, logo em seguida já me acalmei e consegui respirar melhor, porque me dei conta de que eu não tinha obrigação nenhuma de comparecer à apresentação no final do ano. Eu frequentava a oficina para aprender, e aprenderia o quanto pudesse, mas já estava de bom tamanho para mim fazer meus shows entre as quatro paredes do meu quarto.

Assim determinado, passei meses atrapalhando os ensaios. Na época eu não me dava conta, evidentemente, mas a avaliação que faço hoje é a seguinte: o pessoal queria estar afiado para a apresentação de final de ano, e fazia questão de ensaiar várias e várias vezes as mesmas quatro ou cinco músicas, exaustivamente, durante as três horas inteiras dos encontros; eu, por outro lado, não iria à apresentação, não precisava dominar tão bem aquelas músicas, e portanto não demorava a ficar de saco cheio com tantas repetições, o que me levava a direcionar o foco para além da prática. Eu queria mesmo era saber os porquês das coisas. Então, entre uma música e outra eu perguntava “por que o Dó com a sétima sempre aparece antes do Fá?” ou “por que o Si menor com a sétima é idêntico ao Ré maior?”. Longe de se aborrecer, o Fausto, que não conseguia disfarçar a sua paixão por essas questões, me dava explicações longas e detalhadas. E assim foi até a noite em que ele mesmo estabeleceu: dali para a frente, a primeira hora inteirinha dos encontros seria exclusiva para estudarmos teoria musical! Dessa vez, acho que foram só os meus olhos que brilharam.

Aprendi muito ao longo daquele ano. Não foi um estudo completo, claro, mas serviu de base para que eu pudesse seguir estudando teoria musical por conta própria depois.

Quando, enfim, chegou o último ou penúltimo encontro, precisei lidar com o Fausto contrariando a minha decisão de um ano, tentando me convencer a mudar de ideia e comparecer na apresentação. Eu não iria de jeito nenhum, nem mesmo amarrado, e ele logo se deu conta disso. Antes de me deixar em paz, porém, fez questão de me levar para um canto e dizer:

— Tu leva jeito, bicho.

Eu ri. Mas ele insistiu:

— É sério, bicho. Não tô dizendo isso só pra tu ir na apresentação. Se não quiser ir, não precisa, tudo bem. Mas não desiste da música, porque tu leva jeito. É sério, bicho.

Fiquei emocionado com aquilo. Tive até vontade de chorar. Acho que aquela era a primeira vez na minha vida que alguém me dizia que eu levava jeito para alguma coisa.

Leia aqui as outras partes da série.


José Carlos da Silva Junior nasceu e vive na Lomba do Pinheiro, periferia de Porto Alegre. Adotou o pseudônimo “José Falero” em homenagem à mãe, de quem herdou a veia artística, mas não o sobrenome. É escritor, autor de Vila Sapo (Venas Abiertas, 2019) e participante das antologias À margem da sanidade (J. Vellucy, 2018) e Ancestralidades: Escritores Negros (Venas Abiertas, 2019). Trabalha como auxiliar de gesseiro para não morrer de fome, e toca cavaquinho para não morrer de tristeza.

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