Crônica

Tão pequena e tão ingênua

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Tão pequena e tão ingênua

“MINHA FILHA PELO AMOR DE DEUS NÃO VÁ PARA OSVALDO ARANHA”, esse é o refrão da canção Reggae do Bom Fim de Branco Oliveira, da década de 90. O refrão satiriza o medo que a cidade tinha da efervescência cultural da Porto Alegre dos anos 80 e 90, travestido de combate às drogas, balbúrdia, vandalismo e quaisquer outros fatores associados à aglomeração de jovens. Os impávidos jovens reunidos podem ser muito perigosos, pois além de pensar eles agem, organizam-se e acabam não conservando os ideais firmes dos “adultos responsáveis / cidadãos de bem”.  

As transformações culturais, sociais, políticas, artísticas da cidade passam por uma espécie de refração na qual o Bom Fim e a Cidade Baixa são os principais prismas. O centro e os bairros, desde os periféricos até os nobres, se encontravam no Bar João, no Escaler, nos festivais de música, peças de teatro e exposições da Usina do Gasômetro e outros espaços públicos da cidade, como o Araújo Vianna. Tínhamos um carnaval de rua que ganhava cada vez mais força. O ápice disso tudo foi o 1° Fórum Social Mundial em 2001: parecia que Porto Alegre estava trocando as raízes provincianas por ares mais cosmopolitas. No segundo e no terceiro FSM, também sediados aqui, o número de participantes multiplicou-se chegando a 100 mil de 122 países. Em 2005, contou com 155 mil participantes, número equivalente a pouco mais de 10% da população da cidade, e representações de 135 países. “COMO É LEGAL A CIDADE DE VOCÊS” era a frase mais proferida pelos turistas. Oficinas, shows, debates, exposições, uma troca de experiências culturais nunca vista antes na cidade e muito otimismo e esperança de que um novo mundo seria possível. Tudo de graça e ao mesmo tempo gerando receita para a cidade através dos milhares de turistas.

CHEGA! Está demais! A juventude precisa voltar para seu playground! Os maconheiros, comunistas, ateus, estão acabando com o futuro. A maldita ditadura da esquerda está com essas ideias de cotas, bolsas, passe livre e dizem que todos têm direitos, inclusive os pobres. ACABOU!

Porto Alegre 2020: o plano foi concluído com sucesso. O Escaler virou pastelaria, o Bar João e o cine Baltimore foram demolidos, agora são prédios comerciais e estacionamentos. Garagem Hermética, Catacumbas, Bambus, Beco, diversos bares da cidade foram sendo fechados e espremidos entre a repressão da prefeitura, as reclamações de vizinhos e especulações imobiliárias. O Auditório Araújo Vianna foi reformado, cercado e privatizado, só se entra lá pagando, diferente de antigamente, quando os ingressos eram um quilo de alimento não perecível ou um agasalho. Aliás, dos 27 espaços culturais públicos da cidade, 16 têm projetos ou são gerenciados por PPP. Porto Alegre em Cena, Carnaval, Feira do Livro, além de outros projetos importantes receberam valores ínfimos para suas execuções.

A cidade virou um grande shopping center do começo dos anos 2000 em diante. Segundo a ABRASCE – Associação Brasileira de Shopping Centers -, Porto Alegre ocupa o 4° lugar no ranking das capitais, com 17 shoppings, porém a cidade é a 12° em população. Além disso, o número de farmácias e hipermercados é desproporcional para o número de habitantes. O shopping é seguro, nenhum movimento social ou artístico ocorrerá lá, e se rolar será reprimido. Reprimida também será qualquer tentativa de carnaval de rua na cidade. Em 2020 a prefeitura delimitou uma área cercada por grades, estacionou um trio elétrico – pela lógica, um trio elétrico deveria movimentar-se – e estabeleceu um toque de recolher. A polícia agiu para reprimir os perigosos foliões com gás de pimenta e balas de borracha.  

Os bares e casas de espetáculo da cidade, ao longo desse tempo, tiveram seu horário de funcionamento reduzido e para qualquer movimentação com cara de “baderna” a Guarda ou a PM são acionadas e comparecem prontamente. A Usina do Gasômetro fechada há um longo tempo, esperando a privatização. A Orla do Guaíba e o Anfiteatro Pôr do Sol, que receberam atrações como Nei Lisboa, Replicantes, Manu Chao, Nação Zumbi, entre outras, agora só oferece ao porto-alegrense uma grama bem aparada e decks de madeira. O cidadão também ganhou paradas de ônibus com tomadas para recarregar celular e relógios de rua que indicam além da hora a temperatura e anúncios publicitários.

A cidade sofreu uma espécie de extermínio cultural programado, ou seja, fecharam-se espaços autênticos e ofereceu-se espaços artificiais. Quem viveu os anos 80/90 até o começo dos 2000 sente uma imensa nostalgia desse tempo, não só pela modernidade ter tomado os espaços reais por virtuais, mas pelo fato da cidade blindar-se de capitalismo e esquecer que o ser humano precisa de sol e que a gente não quer só comida, quer diversão e arte. Sem cultura, arte, interações sociais mais amplas acabamos nos enchendo de consumismo, e então precisaremos de mais shoppings, ficaremos mais doentes e precisaremos de mais farmácias. A vitamina D substitui o sol e os ansiolíticos ajudam a amenizar a falta que faz uma cidade legal.

Porto Alegre não é demais, Porto Alegre está demais, mas será alegre novamente. Desculpe este meu desabafo que a esta altura de 2022 já não importa nosso bafo. 


Rodrigo Forabozo é professor da rede municipal de Porto Alegre e escreve crônicas, narrativas curtas (bastante prosa poética). Tem um romance “Diário de Cão” e um Ensaio “Manifesto Antropotrágico“, ambos E-books. Fez uma página no facebook “Literasurta” e alguns textos soltos em blogs. É formado em Letras e tem mestrado em Literatura Brasileira.

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