Crônica

Todos os avisos

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Todos os avisos Artistas pintam frase em rua do bairro Pinheiro. Foto: Bom dia Alagoas

No final dos anos 70, Duda, que até então só tinha feito viagens curtas com a família, foi, com um grupo de quatro amigos e uma amiga, de ônibus de São Paulo ao Piauí. Subiriam em dois dias (demorou quatro). Voltaram de carona. Aos 16 anos, não tinha entendido o quanto era filha da classe dominante. O quanto a natureza do seu país era vasta e indomável e qual o peso e o poder do Brasil do General Geisel sobre sua vida e a dos seus. Ela e os amigos viram tanta gente com fome que não podiam contar, mar verde-turquesa e coqueirais, sertão poeirento em que sentiam frio. Andaram livres e embevecidos por quinze dias, exceto no confronto involuntário com as autoridades. A primeira dura foi no Parque Nacional de Sete Cidades, Piauí. Apareceu um guardinha: cabeludo = comunista e maconheiro. Depois em Canoa Quebrada, Ceará, cujo único acesso então era a pé pelas dunas. O grupo dormiu nove deslumbrantes noites a céu aberto quando vieram os guardinhas, revistaram as mochilas e, como não tinham nada para levar, confiscaram sua caixa de OB, (absorventes recém lançados por aqui). 

Outras descobertas importantes para Duda, na mesma época: Tan O Ton não é um bronzeador, mas um acelerador da ação do sol e tem mercúrio. Quando um garoto disser que precisa trepar urgente pois o tesão faz com que os espermas subam e lhe deem dor de cabeça insuportável, não acredite, nem tenha pena. Comer carne é ruim para o carma. Arroz integral + gersal te deixam leve, facilita meditar e viajar. É difícil se livrar dos piolhos. 

Nota de pé de página: Em 1972 a Conferência de Estocolmo estabeleceu o Dia Mundial do Meio Ambiente e convocou todos os países para a Eco-92 (Rio-92).

Anos 80: revolta, revolta, revolta. Quarenta por cento dos brasileiros passa fome. Os militares têm que ir, nos manifestamos nas ruas. Duda engoliu as crises de riso dos anos 70, coreografou atitudes contra o sistema que engessava tudo. Resolveu viver à noite. Foi punk, pós-punk, dark, pós-dark, gótica. Se alimentava de drinques verdes e arranjou um jeito de ganhar dinheiro com seu péssimo talento para tocar baixo: tocar baixo no Crepúsculo de Cubatão todas as quintas-feiras. Nos outros dias era garçonete e vivia de licor de menta e salgadinhos de pacote. Apareceu uma viagem para a Bolívia (sob estado de sítio) no trem da morte e ela foi também conhecer o Peru.

Por conta da magreza, causada pela cocaína pura dos Andes, sua mãe lhe arrancou uns fios de cabelo e o exame constatou vários problemas — excesso de alumínio dos pacotes industrializados, entre eles. Piercing na língua incha mesmo e dá febre. Pintar o cabelo com tintura preta-azulada comprada em sacolés no Bairro da Liberdade, nunca desbota — só sai cortando o cabelo com máquina.   

Depois do desastre nuclear de Goiânia (Césio) em 1987, crianças sem cérebro começaram a nascer em Cubatão, SP, daí o nome da boate homenageando a cidade que tinha tantos gases tóxicos que não se conseguia mais ver o pôr-do-sol.

Depois que a família a deserdou, Duda teve que trabalhar mais e melhor. Três ônibus até o Riocentro, Zona Oeste carioca, onde ajudava a recepcionar representantes de 178 países, entre cabeças coroadas e vários chefes de Estado. Nunca tantos países haviam se reunido pela ecologia, assunto que, até então, era noticiado ao lado dos crimes ou dos classificados. Nascia o Ministério do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Brasil. Duda ouviu e traduziu dúvidas e perguntas. Entendeu que todos tinham assinado a Carta da Terra, e que, se dali, 1992 em diante, os países diminuíssem os gases que causam o efeito estufa, a temperatura do Planeta não subiria em 3% como estávamos nos encaminhando para. Havia, na Rio – 92, um otimismo que afastava o fantasma do fim da Terra. Já se previa um fim em 2030, talvez 2050. Igualzinho se fala hoje.

Duda não se casou nem teve filhos. Foi para a Amazônia participar do mercado do couro vegetal, participou da fundação de três ONGs para desenvolvimento sustentável. Viu o Brasil entrar para o Guinness Book of Records em 2002, com o maior índice de desmatamento do planeta. Comprou uma casinha na serra carioca onde adotou doze cachorros de rua. Quando a região serrana do Rio se dissolveu com as chuvas, salvou oito cachorros. Não foi morar em Minas como seus amigos quiseram. Reuniu doações para as vitimas do desastre de Mariana, mas na época do de Brumadinho tinha quebrado o pé. 

No momento está sentada no sofá de sua casa vendo o noticiário sobre Maceió, ameaçada pela Braskem de fundar umas das maiores crateras com bairros inteiros dentro jamais vista. Comprou ingresso para ver Caetano Veloso cantar seu disco Transa e aguarda feliz essa última oportunidade.  


Maria Silvia Camargo é jornalista e autora (mestre pela PUC-RJ). Acredita que memória é ficção e escreve sobre isso no medium. Publicou três livros de jornalismo — 24 Dias por hora, quanto tempo o tempo tem?, é um ensaio sobre o tempo e a memória. Tem dois romances, Quando ia me esquecendo de você (finalista prêmio SP Literatura 2013) e Leite de Cadela. É da turma 2020 da Oficina literária da PUCRS. Tem, prontíssimo, o livro de contos O buraco do mundo (inédito).

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