Crônica

Um inútil jaleco laranja

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Um inútil jaleco laranja Foto: Gustavo Mansur/Palácio Piratini

Acuado pela falta de perspectivas, sentindo-me um covarde que abandona a luta em meio ao ataque do inimigo, consegui fugir com meus familiares por Viamão, a única saída transitável da Porto Alegre inundada. A enchente de maio havia atingido o seu ápice. As águas, que antes somente ameaçavam as ilhas, o cais, a Orla e as áreas ribeirinhas, já começavam a expulsar os moradores do Centro Histórico e dos bairros Menino Deus, Cidade Baixa, Humaitá, Navegantes, São Geraldo, Floresta e Anchieta. 

Quando escapamos da cidade, o temporal havia dado uma trégua. O dia estava lindo. Viajamos em meio a campos verdes e rebrilhantes, num cenário de filme publicitário. Acomodei-me em Torres, na fronteira com Santa Catarina, triste e culpado, mas aos poucos fui achando uma idiotice minha ter buscado refúgio de uma enchente violenta num apartamento situado às margens de um rio caudaloso, como o Mampituba.

Desde o início da hecatombe, recebera mensagens fraternas vindas da Argentina, da Flórida, da Nova Zelândia, do Rio, de São Paulo, da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Ofereceram-me abrigo em João Pessoa, Ubatuba e Jaguariúna, mas eu não precisava. Morava no alto e sofria apenas pela escassez de suprimentos e energia. Água potável, não tinha nem para um mate. 

Muitos amigos pediram-me indicação de iniciativas idôneas de enfrentamento ao desastre, que pudessem ser apoiadas à distância. Procuravam ajudar, mandando bens ou dinheiro, num grande arco de solidariedade. Coisa reconfortante, bonita de ver. 

Também eu, desde o balneário que me acolheu, tratei de buscar algo para fazer pelos flagelados. Pesquisei alternativas e tomei as direções indicadas. Vesti um jaleco laranja bem limpinho, como o do governador Eduardo Leite, e saí por aí, como mais um herói em defesa dos cidadãos. Com minha família posta a salvo, era o que me tocava fazer. 

O dia estava cinzento e a chuva voltara a cair. As vias também em Torres começavam a ficar cheias d’água e o valão da rua do supermercado subira ao nível do passeio.

No Centro de Assistência ao Pescador, que concentrava a maioria das doações, eu poderia colaborar na triagem e despacho de bens de todos os tipos – roupas, calçados, água, alimentos, itens de higiene e limpeza, travesseiros, cobertores, colchões –, mas havia voluntários demais e minha ajuda foi dispensada. No ginásio da Prefeitura, ao contrário, havia doações de menos. Na paróquia católica, apenas canalizavam os itens doados para o Centro de Assistência ao Pescador, onde não me queriam. Proprietários de um parque aquático das cercanias estavam engarrafando água potável com o auxílio de voluntários para enviar à região metropolitana, mas o lugar ficava a 60 km de distância de onde eu me encontrava. Achei que seria um desperdício de gasolina, que já ameaçava se tornar escassa, e considerei muito arriscado viajar em meio ao aguaceiro. Era certo que eu acharia algo para fazer dentro dos limites da cidade. 

Voltei a andar pelas ruas de Torres, em busca de opções. Encontrei um prédio de aspecto industrial, onde pessoas estendiam uma faixa, pedindo auxílio. Estacionei o carro uma quadra adiante, driblei as poças que minavam o caminho e perguntei, ainda sob chuva torrencial, se eu poderia ajudar em algo. Receberam-me bem, pois recém estacionara ali ao lado uma enorme carreta, atopetada de doações para descarregar e distribuir em veículos menores com destino à capital. Trinta toneladas de água mineral, em fardos de seis litros.  

Coisa boa é água. Fazia muita falta na querida Porto Alegre inundada de onde eu havia fugido, porque a enchente comprometera o funcionamento das estações de tratamento. Era uma causa meritória.

Quando entrei no prédio, todos foram muito gentis, aceitaram-me como um irmão, ficaram felizes com minha disposição para o trabalho. Ofereceram-me água. Um sanduíche. Preocuparam-se em mostrar-me onde colocar minha capa molhada, meu jaleco laranja e meus pertences. Ofereceram-me uma camiseta vermelha, o uniforme dos voluntários, para não estragar as minhas roupas, nem sujar meu lindo jaleco laranja, tão limpinho quanto o do governador. 

Eu não precisava. Disse que enviassem a camisa que me ofereciam para os desabrigados. Quem vem da guerra pode avaliar melhor o tamanho da necessidade. Ainda zumbiam em meus ouvidos as pás dos helicópteros de resgate.

Um sujeito grande e barbudo quis saber se eu já estivera ali antes, e eu admiti ser de fora da comunidade, um outsider, um fugitivo ambiental. Ele disse que aquilo era o refúgio perfeito para mim. Aproveitou para mostrar-me o brechó e o armazém solidário para atender famílias carentes, que o pessoal tinha organizado. Ofereceu-me água outra vez. Eu acabei aceitando, porque em Torres perdera sentido fazer racionamento. O barbudo disse que, naquele espaço, todos eram bem-vindos, que eu ficasse à vontade.

Eu fiquei. O clima era bom, descontraído. As pessoas mostravam-se amistosas e estavam imbuídas de um espírito solidário que me agradava. Esperavam pelo trabalho com bom humor e disposição, homens, mulheres, jovens, crianças. Ajudar os necessitados motivava-os muito. A lama e a chuva não importunavam os que se postavam lá fora para esvaziar a carreta. Dentro, os outros articulavam-se numa corrente humana para fazer chegar a sequência de fardos até os fundos do salão.

Quando os feixes de garrafas começaram a passar de mão em mão pelo corredor adentro, alguém pediu que colocassem música. Uma moça pôs-se a cantar uma espécie de lamento, outra ensaiou o “Sirvam nossas façanhas”. Um insatisfeito pediu alguma coisa nova, diferente, e por pouco eu não puxei um Zeca Baleiro: “Eu vi mamãe Oxum na cachoeira, sentada na beira do rio, colhendo lírio, lirulê, colhendo lírio, lirulá…“. Teria sido um desastre. Felizmente, antes de mim, o tipo magro que organizava a pilha de fardos no interior do salão começou a recitar “Um fardinho incomoda muita gente, dois fardinhos incomodam, incomodam muito mais…”. Todos rimos. E demos sequência ao cantochão, enquanto empurrávamos as garrafas para diante. “Três fardinhos incomodam muita gente; quatro fardinhos incomodam, incomodam, incomodam, incomodam muito mais”.

Com ares de capitã do time, uma loira resolveu interromper-nos, socorrendo-se de uma playlist do Spotify, que botou a soar em alto volume, a partir de caixas de som instaladas perto do brechó. O ambiente encheu-se de canções de gosto duvidoso, cujas letras me eram difíceis de compreender, pois ecoavam nas paredes nuas do corredor. Percebi menções a Jesus e aleluias, e só então vi que nas camisetas distribuídas aos voluntários estava escrito “Angel’s Church”. Somente nesse momento percebi onde estava. Os hinos de louvação a Deus confirmaram minhas suspeitas. Era um templo evangélico.

O barbudo, que vim a saber ser o pastor, puxou um rock furioso e estimulante, cuja letra dizia: “O Coliseu não matou a igreja, o leão não matou a igreja, o mal não venceu a igreja do Senhor”. Cantávamos com alegria, empurrando os fardos de água pelo corredor, num balanço ritmado pela louvação, enquanto o pastor mexia-se como um dançarino de rap. Vibrávamos a cada novo pallet de fardos desfeito, quando tínhamos um instante de descanso.

Passadas duas horas de trabalho contínuo, um jovem aproximou-se de mim e secou a minha testa suada e meus cabelos grisalhos com uma toalha macia. Depois, pôs as mãos nos meus ombros e disse com olhos afetuosos: “irmão, não se canse, temos uma longa jornada pela frente”. 

Eu respondi, apaziguado, “estou bem, sei que a batalha será dura”, mas fiquei pensando que há muito tempo ninguém se preocupava de forma tão sincera com meu bem-estar. Mais tarde, com os ombros reclamando pelo esforço repetitivo, eu me lembraria com simpatia daquele jovem amável.

Quando terminamos a faina com o caminhão, uma moça chamada Katielen pediu meu número de celular para incluir no cadastro dos voluntários. Haveria mais trabalho nos próximos dias, pois aguardavam remessas de doações de irmãos paulistas. Dei-lhe a informação que me pedia, torcendo para que a carga por chegar fosse de fraldas ou de papel higiênico, itens bem mais leves que as garrafas d’água que acabáramos de descarregar.

Katielen ficou contente. Agradeceu por minha disponibilidade. “Glória a Deus”, disse. 

Avaliei que seria bom se nossa sociedade fosse sempre solidária e mobilizada e o poder público conseguisse atingir a mesma agilidade e organização que a “Angel’s Church”. Temi pelo futuro do estado laico, essa grande conquista civilizatória.

Dias depois, Katielen me convidaria por Whatsapp para um culto no salão da igreja, o mesmo que havíamos usado como armazém. Escreveu ainda que eu havia esquecido o meu jaleco laranja, aquele inútil coletinho, que não me servira para nada. Sugeri que o doasse, também.

Naquela noite, sonhei que estava numa missa, mas o pregador não era o sujeito barbudo e simpático e, sim, um engenheiro ambiental. Vestia um terno escuro com riscado de motivos florais. Com as mesmas maneiras doces do outro, defendia a ciência e o equilíbrio da natureza, a gestão responsável dos equipamentos coletivos, a consideração pelos demais e a solidariedade entre os homens. Quando deu por encerrada sua pregação, ele fechou o powerpoint com gráficos hidrológicos e guardou seu laptop numa pastinha preta. Estranhando o desfecho do culto, alguém perguntou quando iriam louvar a Deus. O engenheiro-pastor deu um sorriso amoroso e disse apenas: “no momento, não precisamos de deuses, somente dos homens e das mulheres”.


Miguel da Costa Franco é engenheiro agrônomo por formação, roteirista e escritor. Autor dos livros Imóveis Paredes (Ed. Libretos, 2015), Não Romance (Ed. Metamorfose, 2018) e A filha do Dilúvio (2021). Nascido em Roca Sales – RS, passou a infância entre Encantado, Quaraí, Soledade e Erechim. Vive em Porto Alegre desde 1969, com intervalos breves de ausência (em Júlio de Castilhos, de 1981 a 1982, e em Brasília, de 2004 a 2008).

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