Crônica

Umas do Aníbal

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Umas do Aníbal

Obrigação nossa, dos amigos do Aníbal: juntar suas histórias e seus textos para publicar um livro, um dos livros mais importantes da cultura no estado, em todos os tempos. Pelo menos, de um dos livros mais singulares jamais concebidos em nossa terra e em nossa língua. 

Primeiro os fatos: faleceu em abril de 2013 Aníbal Damasceno Ferreira, aos 80 anos de idade. Viveu intensamente o mundo literário e cinematográfico desde sua juventude. Trabalhou na rádio da Universidade, no tempo em que ela era um dos eixos da cultura exigente de Porto Alegre, e depois resignou-se a completar seu tempo de serviço como funcionário federal no Instituto de Física da UFRGS, onde comandava um modesto setor dedicado a filmar experimentos. Foi professor de cinema na FAMECOS, da PUC, por décadas, e ali cevou uma penca de jovens cineastas. Trabalhou em cinema, inclusive com Teixeirinha. Escreveu contos e ensaios para publicações variadas, de forma assistemática, mas sempre com uma verve muito, mas muito rara. Era uma figura humana delicada e um leitor peculiaríssimo – erudito autodidata, conhecedor minucioso de grandes autores (como Machado de Assis e Nelson Rodrigues), se dizia um “tarado semântico”, porque vibrava com frases, com giros de linguagem, mais do que com enredos e temas. 

Exemplo que ele recitou mais de uma vez era a abertura do conto “Famigerado”, do Guimarães Rosa. Ele dizendo com sua voz fraca e olho vivo: “Foi de incerta feira ― o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça? Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranqüilo. Parou-me à porta um tropel. Cheguei à janela.” Dizia as palavras e comentava: “Entende como é? Eu não sou especialista em literatura, não sou crítico literário ― eu sou um tarado semântico”. 

Minha história com ele: creio que pela primeira vez nos cruzamos na redação do breve mas valente Pasquim Sul, sim, isso mesmo, o próprio Pasquim carioca, que teve um encarte feito em Porto Alegre por uns meses. Foi quando Brizola estava no poder lá no Rio, depois de 83, que ele bancou o Pasquim de lá, e que aqui rolou essa espécie de sucursal, comandada pelo Cói Lopes de Almeida, com o Carlos Feyo, o Marcos Klassmann e outros. Eu colaborei umas quantas vezes, me arriscando e querendo participar como todo guri de 20 e poucos anos. E lá o Aníbal fez uma coluna que parodiava o colunismo social, com a famosa verve dele.

ANOTAÇÕES 

Passamos a conviver de perto aí por 88, almoçando mais de uma vez por semana juntos, no bar do Antônio, lá no Campus do Vale. Era uma festa para mim e para outros colegas, que com o tempo foram se chegando, Homero Araújo, Ruben Daniel Castiglioni, sem falar nos professores da Física, como o Joqa Medeiros e o Lívio Amaral, mais o querido Joaquim Fernandes, que vinha da Veterinária para conversar de literatura e coisas inteligentes com o Aníbal. 

(E então, depois desses almoços, eu chegava em casa e anotava o que ao Aníbal tinha dito. E me arrependo de não ter escrito mais, naturalmente.)

O que ganhei nesse convívio não tem conta. Para não ir muito longe: meu doutorado, sobre a crônica de Nelson Rodrigues, teve Aníbal como origem e como orientador-mor informal, aquele com quem a gente de fato conversa para saber se está tudo bem. Ele, acho, nem formado em curso superior era (creio que era jornalista provisionado), mas tinha o estatuto, para mim, de doutor, o cara capaz de dar os toques necessários, de acompanhar no percurso, de vibrar com as descobertas do outro. 

O Aníbal era da raríssima tribo dos bons conversadores. Tenho a impressão de que o centro de sua vida mental era mesmo a conversa, o papo com os amigos, como dizem ter ocorrido com Macedônio Fernández, amigo e interlocutor indispensável de Jorge Luis Borges. Isso transformava cada almoço, cada cafezinho (o dele sempre com muito leite, para não provocar uma gastrite que tinha), num espetáculo irrepetível. O que eu ouvia ali era ouro.

Dou outro exemplo: um belo dia, me pergunta o Aníbal se eu já tinha lido uma novela, meio ruim mas muito interessante, chamada Estricnina, publicada em Porto Alegre em 1897. Não, claro que não. Não tinha lido muita coisa, que fui ler por indicação dele. Ele me disse que na biblioteca da Letras tinha um exemplar. Fui lá, li, me entusiasmei tanto que dei um jeito de republicá-la em 1987, cem anos depois da primeira edição.

QORPO QUE SOBE

Em meados dos anos 50, o Aníbal adoeceu gravemente (creio que de tuberculose) e passou meses de cama. Neste tempo, ele leu muito, até mesmo coisa que não parecia merecer atenção. Um parente dele, Athos Damasceno Ferreira, primo do pai, lhe alcançou alguns livros; entre eles, uns números de uma esquisitíssima publicação do século 19 ― a Ensiqlopédia ou Seis meses de uma enfermidade. O autor se assinava Qorpo-Santo e gozava, na altura, de uma fama de maluco total e irremissível: ninguém, nos anos 1950, o levava a sério como escritor, como dramaturgo, nada. Era um maluco da cidade, um folclore, como se diz. 

Pois bem: o Aníbal leu e julgou encontrar ali algo que ele prezava demais – a singularidade. Qorpo-Santo podia ter sido um maluco, mas tinha um quê de genial. Assim que pôde, Aníbal copiou, batendo a máquina com papel-carbono, algumas das peças do tal louco, e espalhou esse material entre os bem-pensantes do momento, jovens e velhos, para badalar o cara. Ele entusiasmadíssimo, querendo montar as peças, mas não encontrava muito eco entre os intelectuais e críticos com poder de fogo. (Angariou simpatias com gente da geração dele, como Antônio Carlos Sena e Flávio Oliveira, que liderariam a primeira encenação, anos depois, em 1966.)

A conjuntura parecia favorável em vários aspectos: a UFRGS estava ganhando um flamante curso de Arte Dramática (que começou a funcionar em 1958); no domínio da Literatura, Guilhermino César escrevia uma nova história da literatura sul-rio-grandense (que sairia à luz em 1956). O Aníbal tentou esses dois caminhos para angariar prestígio para o Qorpo, mas não rolou. (A história desse percurso requer um livro inteiro para ser contada, tendo sido relatada já por Janer Cristaldo, que a viveu de perto; eu mesmo pesquisei e coletei muita informação sobre os bastidores, mas ainda não tive o vagar necessário para tal e tanto.) Guilhermino desconsiderava Qorpo-Santo como escritor, até então, e disse isso ao Aníbal.

Mas meu amigo insistiu, e em 1966 foi levada a palco a obra de Qorpo-Santo; por total acaso, a montagem foi convidada a participar de um festival de teatro no Rio de Janeiro, então a capital cultural indisputada do Brasil; e lá aconteceu de o grande crítico teatral carioca da época, Ian Michalski – e o Rio era o grande centro artístico brasileiro ainda –, assistir e vir a público no dia seguinte, por escrito, para dizer que daquele momento em diante toda a história do teatro brasileiro deveria ser revista porque havia sido descoberto, no Sul, um gênio, um precursor do teatro do Absurdo, um tal de Qorpo-Santo.

O que aconteceu na província, depois? Bem, todos aqueles a quem o Aníbal tinha distribuído, infrutiferamente, cópias das peças, agora queriam dizer que sim, tinham visto que ali havia valor estético, mas sabe como é, não tinha aparecido a chance de dizer em público isso, coisa e tal. E o Aníbal, que podia nessa hora triunfar e chamar todos de patetas, apenas se reconfortou intimamente, porque via enaltecido um cara que merecia, o maluco do Qorpo-Santo.

Um complemento dessa história, para mostrar o caráter do Aníbal. Como eu disse acima, juntei material sobre esse percurso, entrevistei meio mundo, bolsistas meus tiraram xerox de debate jornalístico da época, mas me faltava um depoimento ― o dele mesmo, com quem eu almoçava sempre, ele que foi o protagonista mais decisivo de tudo. Pedi mil, duas mil vezes para ele me dar entrevista, gravada, para eu poder contar isso direitinho. 

Sabe o que me disse o Aníbal? Que não ia nunca me dar entrevista sobre isso. “Mas por quê, meu deus do céu, se eu falo contigo o tempo todo, se eu sei de detalhes, tu mesmo me contaste? Se eu sei muito sobre o fato de o Guilhermino ter negado valor ao Qorpo-Santo na hora e depois ter reconhecido seu valor, a ponto de escrever um livro sobre o autor, mas apenas depois da consagração no Rio?”

E ele: “Porque a outra parte não vai poder contar a sua versão”. De fato, Guilhermino passou os últimos anos incomunicável, e veio a falecer em 93, sem nunca ter sido confrontado publicamente com os fatos, sem nunca ter sido interpelado por aquela mudança de opinião e sobre o papel do Aníbal nisso tudo. E o Aníbal, que matou no peito uma desfeita grande do mesmo Guilhermino (que não concedeu ao meu amigo o reconhecimento de ter sido o verdadeiro primeiro divulgador), preferiu terminar seus dias sem falar isso tudo em público.


Luís Augusto Fischer é editor da Parêntese.

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