Crônica

Vilã da inflação

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Vilã da inflação

Ela era uma menina tímida, que enfiava três dedos na boca quando lhe faziam uma pergunta, enviesava a mirada, olhos no chão porque precisava responder, sabia a resposta, mas ficava em silêncio, fervendo por dentro. Nenhuma palavra saía. Do que gostava mesmo era de armar os móveis, para as amigas sentarem, e o fogão em que cozinhava no quintal. De tão pequenas, as amigas ocupavam o banco que construíra com uma caixa de sapatos. Todas tinham amor pelo silêncio e ódio por um cheiro repugnante que invadia o ambiente ao meio-dia: bastava as cozinheiras da vizinhança temperarem o feijão, que as cinco, no colo dela, sumiam do quintal. Ao longo dos anos, a presença dela foi sendo marcada pela economia na fala e condicionada à supressão da cebola no cardápio, fosse na casa de amigos, fosse em restaurantes. Ninguém se negava a ceder, nem indagava a causa daquela rejeição. 

Seis décadas se passaram e ontem, na gôndola das hortaliças, descobriu entre estarrecida e inebriada, que o bulbo tunicado (assim se chama a parte comercial da planta herbácea) tinha sido incluído na lista das maiores altas de 2022. A cebola tornou-se a vilã da inflação. Uma alta no ano de 130,14%, o dobro da batata-inglesa, três vezes mais do que a mandioca e o feijão e 14 vezes mais do que a cerveja, que, pelas contas dela, subiu junto com o agradável odor a malte, cevada e lúpulo, no mesmo período, 9,37%. O funcionário da balança comprovou o preço do quilo no bolso, porque a mulher dele havia pedido na véspera que levasse um quilo para casa. Ela conversou com ele por cerca de cinco minutos tentando convencê-lo de que o cheiro forte era desagradável, no ambiente e na boca. Substituída pelo louro, poderia fazer sucesso na vizinhança e economia no orçamento doméstico. A mudança nos hábitos culinários não convenceu o funcionário; cabisbaixo, lhe confessou que o argumento não tinha a menor possibilidade de funcionar com a mulher, baiana, fã das pimentas e da cebola.  “E o sabor forte, que provoca mau hálito?” Ele sacudiu a cabeça. “E a consistência?” Ele retrucou: “A mulher doura o refogado até que não haja mais óleo”. 

Desestimulada pelos argumentos, ela colocou no carrinho de compras as frutas já pesadas e foi deixando o lugar vago para a consumidora que estava à frente de uma fila que se formara durante a breve conversa com o funcionário. Ao percorrer a fila no sentido inverso notou que cinco mulheres iam pesar duas ou três cebolas colocadas em pequenos sacos plásticos, no meio de outros produtos. A inflação não parecia um acontecimento banal para elas. Comprovou a suspeita quando ouviu a queixa da primeira, a outra sequer lhe deu atenção, virou o rosto quando ela se aproximou propondo o boicote como tática de luta contra a alta do preço da cebola. A terceira confessou-lhe cobrindo a boca com a mão em forma de concha, que tinha sido uma fiscal do Sarney, na época em que o presidente da república deixou aos consumidores a responsabilidade de fiscalizar os funcionários de supermercados que desrespeitavam o congelamento de preços, expelindo etiquetas remarcadas de suas pequenas máquinas. No caso da cebola, sentia decepcioná-la, pretendia evitar o desperdício e abusar do alho, mas era impossível mudar o tempero do feijão.

Até ontem, a brincadeira no quintal interrompida pelo cheiro repugnante permanecia na memória, sem explicação, além do desejo dela de ser o centro das atenções. Com o passar do tempo, o que os adultos percebiam como uma excentricidade ganhou forma de riso complacente em casa de amigos e nos restaurantes. Septuagenária, continua vítima de mal-estar provocado pelo cheiro e pela sensação da iminência do gosto da cebola na boca. Na fila do hipermercado convenceu-se de que um movimento contra a cebola não convence ninguém. No entanto, aquela imagem da infância, depois do choque de realidade na gôndola das hortaliças e desta escrita, torna-se uma cena verossímil para os outros.


Beatriz Marocco é jornalista com doutorado em Jornalismo. Autora de livros e artigos acadêmicos, professora universitária e pesquisadora independente, tem-se dedicado a pensar criticamente as práticas jornalísticas.

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