Edição Julho

A torre, a Amazônia e o aquecimento global

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A torre, a Amazônia e o aquecimento global

A árvore mais alta de todo o território latino-americano vive no Brasil. Com quase 90 metros, o angelim-vermelho resiste no norte do Pará há pelo menos 400 anos. Apesar de ser uma unidade de conservação, a área na Floresta Estadual do Paru onde a maior árvore está fincada foi uma das mais desmatadas da Amazônia no final de 2022. A espécie é uma das riquezas ambientais ameaçadas pela destruição da floresta que abriga 10% da biodiversidade do planeta e representa uma peça-chave para entender a dimensão dos impactos da crise climática global.

Acima da copa das árvores, até mesmo do angelim-vermelho, ao norte de Manaus, uma torre de aço vigia a mata. Mais jovem do que a árvore, a estrutura inaugurada em 2015 foi chamada de Amazon Tall Tower Observatory (Observatório da Torre Alta da Amazônia), mais conhecida como torre ATTO em função da sigla. Instalada na Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Uatumã, no centro da floresta, a torre de 325 metros é o laboratório de cientistas que monitoram e analisam as trocas entre a vegetação e a atmosfera. 

O projeto, iniciado em 2008, tomou forma a partir de uma parceria entre os governos brasileiro e alemão, inspirado em uma torre de nome parecido – a Zotto – instalada na Sibéria em 2006. No Brasil, a primeira torre para medir a interação entre floresta e atmosfera na Amazônia foi erguida nos anos 1980, mas tinha apenas 45 metros de altura. Com isso, os resultados eram influenciados pelo ambiente da copa das árvores. Desde então, pesquisadores traçaram objetivos mais altos. Hoje, o ATTO é gerido pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), junto de universidades e outras instituições brasileiras e do Instituto Max Planck, da Alemanha. 

Os dados meteorológicos, químicos e biológicos angariados a partir da torre ajudam a entender a fundo processos de trocas de gases de efeito estufa – como o metano e o dióxido de carbono –, e a influência dos aerossóis sobre a temperatura e a formação de nuvens. Em uma área preservada da floresta longe da poluição das cidades, o ATTO permite o contato com um ar quase inalterado pelas ações humanas. “Na época chuvosa, a atmosfera tem um padrão quase pré-industrial”, explica o meteorologista Luiz Machado, professor na Universidade de São Paulo e pesquisador na torre. 

O estudo de um ambiente preservado possibilita fazer comparações com lugares mais devastados, e pode ajudar cientistas a pensar como reconstruir esses ecossistemas. “A grande contribuição do ATTO é conhecer os processos de troca entre floresta e atmosfera para que esse conhecimento seja colocado em modelos meteorológicos, que possam fazer previsões de forma adequada e realista”, destaca Machado. E os resultados não ficam restritos ao clima brasileiro.

A partir de experimentos feitos na torre, cientistas já sabiam que parte significativa dos aerossóis – partículas minúsculas que ficam em suspensão no ar – da Amazônia eram provenientes do deserto do Saara. Neste ano, foi possível quantificar a dimensão desse fluxo intercontinental: durante o período seco, a fumaça africana é responsável por trazer até 60% de um tipo de aerossol originário de queimadas para a floresta, e até 90% na época chuvosa. A “poeira” africana não afeta apenas a qualidade do ar, mas também a formação de chuvas, que depende da quantidade de aerossóis disponíveis na atmosfera. Pesquisas explicam que o trânsito de partículas carrega nutrientes importantes, como o fósforo, que influencia a capacidade da mata absorver o dióxido de carbono – processo fundamental frente ao aumento de emissões de gases de efeito estufa. 

“Cada molécula de ar que você está respirando agora já foi respirada por um elefante na África, por uma pessoa na China ou na Groenlândia e assim por diante. A atmosfera é uma entidade global, como os oceanos”, resume Paulo Artaxo, chefe do Departamento de Física Aplicada do Instituto de Física da USP e membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU, o IPCC. Com o aquecimento, esses padrões atmosféricos podem ser alterados. “Os transportes de longa distância são fundamentais para a floresta ter nutrientes, como o fósforo. Se você muda a circulação, pode estar acabando com uma fonte de alimentação da floresta””, exemplifica Machado, citando os achados recentes em que cientistas demonstraram a importância do fósforo para a Amazônia.

Os avanços científicos engrossam o corpo de evidências de que, ao se tratar de meio ambiente, ações locais têm impactos globais. Em janeiro, na revista Nature Climate Change, um artigo demonstrou, a partir de simulações computadorizadas, uma correlação climática entre a Amazônia e regiões como o Planalto do Tibete e a camada de gelo da Antártida Ocidental. Essas áreas são chamadas de elementos de ruptura: o desequilíbrio em um destes locais pode ter  impactos a milhares de quilômetros de distância, motivadas pelos trânsitos oceânicos e atmosféricos. O desmatamento na Amazônia, por exemplo, pode estar ligado ao derretimento da camada de gelo – outrora considerado “perene” – no Tibete.

Não é preciso ir longe para ter noção da grandeza do papel da Amazônia frente à crise climática. É a floresta a grande responsável por irrigar as demais áreas do Brasil, a partir dos chamados “rios voadores”. No ciclo hidrológico da Amazônia, a umidade do oceano é transportada para a floresta, que recicla a água e emite o vapor que levará a chuva para o sul e sudeste do Brasil. O desmatamento faz com que menos vapor se conserve nesse movimento – como resultado, menos chuva chega ao resto do país. 

Alguns autores se referem ao comportamento que levou a esse cenário como “agrossuicídio”: em um país cuja economia depende do agronegócio, desmatar a floresta amazônica com esse fim é um tiro no pé. E não é algo que sentiremos só daqui a décadas. A estiagem no Rio Grande do Sul, enchentes e deslizamentos como os que ocorreram recentemente no Rio de Janeiro e em Pernambuco, períodos de calor elevado são apenas alguns dos eventos extremos que devem se multiplicar e intensificar se não forem tomadas ações urgentes. Ao destruir a floresta, importantes serviços que a Amazônia presta ao clima já vêm sendo prejudicados.

Em 2021, uma equipe com presença de cientistas brasileiros publicou achados alarmantes na revista Nature: em determinadas áreas mais desmatadas e queimadas – que incluem o Pará, lar do angelim-vermelho –, a floresta amazônica já emitia mais CO2 do que absorvia. A própria Amazônia conta com uma gigantesca reserva de carbono, e é natural que a floresta emita esse gás, mas em condições normais ela deveria remover da atmosfera mais do que produz. Mas com a diminuição de sua capacidade de fotossíntese, a mata se torna incapaz de capturar CO2 como costumava. “Se você desmatar a floresta, esse estoque de carbono vai para a atmosfera, correspondendo a cerca de 10 anos de toda a queima de combustíveis fósseis”, explica Artaxo. Nesse ritmo, a seca se intensifica, os padrões de chuva se alteram e o clima se desequilibra de forma geral. 

Ainda não se sabe quanto tempo temos antes que as mudanças na Amazônia sejam irreversíveis, mas o ponto de inflexão já vem sendo forçado. “Há pesquisadores que colocam que essa transição da floresta amazônica já está acontecendo. Outros estimam que se a taxa de desmatamento chegar em torno de 30% da área original ou se o aumento da temperatura global do planeta atingir 3 graus, isso pode levar a floresta a um colapso”, alerta Artaxo.

O cenário não é promissor, mas uma coisa é certa: não há mitigação da crise climática sem a Amazônia. O último relatório do IPCC alertou que, de 1970 para cá, a temperatura global subiu mais rápido do que em qualquer outro período dos últimos 2 mil anos. Em 2019, as concentrações de CO2 já eram mais altas do que em qualquer outra época dos últimos 2 milhões de anos.

Sem um reforço nas políticas mundiais contra o aquecimento global, estima-se que o aquecimento atinja 3,2 ºC no final do século. Um cenário em que, se as pesquisas estiverem certas, a Amazônia como conhecemos hoje já teria deixado de existir há muito tempo. 


Valentina Bressan é repórter da Fronteira, estúdio especializado em reportagens. Tem textos publicados no Matinal, ((o))eco, e nas revistas Claudia, Veja Saúde e Crescer.

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