Ensaio

A biblioteca de Raymundo Faoro

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A biblioteca de Raymundo Faoro

(Porto Alegre, 1941 a 1946)

Podemos conhecer a trajetória de uma pessoa por meio dos livros que ela leu? Por meio da formação de uma biblioteca particular? O escritor argentino Alberto Manguel disse certa vez que “o livro é muitas coisas”. Ele é, claro, aquilo que se apresenta mais diretamente aos olhos: o título, a autoria, a arte da capa, as formas tipográficas, o número de páginas, a lombada, a data de publicação, o preço de venda, a tradução, o gênero e a editora. Mas um livro é, conforme Manguel, uma representação sobre muitas outras representações. Ele sempre é mais do aquilo que vemos. Um livro pode representar um aprendizado, um objeto da autoridade intelectual, uma viagem, um sonho, uma fonte de inspirações, um recurso para a emancipação, uma ameaça ao poder autoritário, uma peça da memória, um espelho, uma janela, uma companhia contra a solidão, e por aí vai. 

E quando esses livros pertenceram a um escritor de livros? Quando o leitor é um famoso intelectual e intérprete da sociedade Brasileira? Estamos falando da biblioteca de Raymundo Faoro (1925-2003), jurista, historiador, sociológico, crítico literário, ativista da opinião pública nacional. Faoro é o autor do influente “Os Donos do Poder” (1958), obra na qual ele aborda, desde o Estado português e o período colonial brasileiro, a persistência do Estado patrimonial que serve aos estamentos e deles se serve. 

As ideias de Faoro contribuíram para o avanço do pensamento democrático e da ordem constitucionalista brasileira, em especial a partir do final da década 1970, quando assumiu a presidência nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, em pleno processo de redemocratização. Neste ano, em 15 de maio, completaram-se 20 anos de seu falecimento. 

No caso de Raymundo Faoro, os livros ganham outros significados possíveis. Dou exemplo. O que diferencia um exemplar de Guerra e paz, de Leon Tolstói, de um exemplar do mesmo livro só que adquirido e lido por Faoro na década de 1940, quando ainda jovem estudante de Direito em Porto Alegre? Na minha opinião, muda muito. Trata-se, agora, de um livro repleto de “práticas de leitura”, na expressão desenvolvida pelo historiador francês Roger Chartier. O exemplar torna-se singular nas marcas que abriga: sentimentos, desejos, inseguranças e experiências podem habitar a leitura. 

Esse livro está na biblioteca de Raymundo Faoro, hoje, sob a guarda da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, onde ele atuou como procurador a partir de 1963. São títulos de diversos tempos, gêneros e idiomas, reunidos desde a sua juventude em Porto Alegre até o início dos anos 2000, no Rio de Janeiro. Dentre 9.280 livros, encontramos romances, ensaios, estudos e relatórios adquiridos em livrarias e em sebos, no Brasil e no exterior. Lá podemos ler, entre outros: Eça de Queiroz, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Maquiavel, Karl Marx, Max Weber, Ruth Benedict, Joaquim Nabuco, Franz Boas, Max Scheller, Ruy Barbosa, André Gide e Ruy Barbosa.

No dia 15 maio, completados 20 anos do falecimento de Faoro, abri a exposição, no Centro Cultural da PGE/RJ (Convento do Carmo, Rio de Janeiro), “Raymundo Faoro. Os anos e os livros de formação”. Nela, convido a um olhar mais de perto sobre a biblioteca do intérprete. Assim, a veremos como um arquivo construído em detalhes. Nele encontramos muitas práticas que selecionam, organizam, excluem e ordenam narrativamente os livros e seus autores. Podemos pensar nas bibliotecas como processos de “auto-arquivamento”, conforme Philippe Artières. 

Diante das séries e fileiras de lombadas, muito provavelmente esteja um pensador construindo as ideias e até mesmo escupindo a sua (auto)imagem por meio dos livros que lê. Foi Lilia Schwarcz quem certa vez me disse que não existe arquivo íntimo de uma pessoa que pretende se tornar pública. No caso de Faoro estamos diante de um “advogado-intelectual”, como ele mesmo se referiu ao discursar sobre a sua geração em 1986. A biblioteca de Faoro resulta de um extenso de trabalho não somente de coleta e guarda, mas de construção de si mesmo.

Prova maior está ao abrir os livros. Lá acessamos as marcas de um leitor assíduo e organizado. Pelo menos nas séries mais antigas, em 1940, Faoro registrou a sua assinatura nas primeiras páginas. Ao longo das páginas, ele destaca trechos e até escreve observações nas laterais do texto. É como se ele travasse uma discussão direta com os autores dos livros, imergindo nos contextos sociais narrados, borrando os limites entre o que lê nos livros e o que vive em Porto Alegre. É como se Aluísio Azevedo estivesse anotando os acontecimentos sociológicos da cidade. O Rubião, de Machado de Assis, parece lá habitar, chegando, assim como Faoro, do interior provinciano para a capital. Lá o que prevalece, segundo o jovem estudante, é o interesse burguês pelo dinheiro em detrimento da “vida do espírito”. 

Enquanto a cidade se verticaliza no centro com os “arranha-céus” modernos notados antes pelos escritores locais Mário Quintana, Érico Veríssimo, Reynaldo Moura e Dyonelio Machado, bolsões de miséria são formados nas periferias da capital, concentrando e enfatizando as desigualdades de classe e raça. Faoro passa a maior parte dos dias lendo em um dos quartos do Hotel Palácio, na esquina da rua Vigário José Inácio com a Riachuelo, no centro da cidade. Enquanto lê, ele provavelmente ouve os sons da rua. Por lá passam transeuntes em direção ao Teatro Carlos Gomes para lá assistir peças de humor popular. Na mesma rua fica o Sindicato dos trabalhadores do setor naval. A cidade vai se industrializando. 

Nos jornais e revistas locais, o noticiário sobre a Segunda Guerra Mundial divide espaço com astros e estrelas do cinema de Hollywood.  Nos últimos anos da ditadura do Estado Novo, em algumas colunas laterais aos textos principais, lê-se sobre o aumento dos custos de vida, o pauperismo, o banditismo urbano e o analfabetismo. Naquele Brasil, a metade da população com idade acima dos 15 anos foi classificada como analfabeta. 

Um livro é, ao mesmo tempo, o que está dentro e o que está fora; o visível e o não visível. Didi-Huberman talvez diria se tratar de um “não-saber”, o que, portanto, pede uma “exegese” profunda em seus labirintos. Com as práticas de leitura, Faoro constrói o mundo que deverá ler. Conhecemos um Machado meio gaúcho e um Tobias Barreto lendo Karl Mannheim. Porto Alegre, Recife, Paris, Berlim, Moscou. A leitura desmancha fronteiras e constrói parentescos eventuais e até improváveis. É assim que o Tolstói de Faoro poderá descrever, na companhia de Gilberto Freyre, o declínio das aristocracias rurais e a ascensão da burguesia urbana (em Porto Alegre). Machado de Assis foi professor de Max Weber. 

Nessa leitura sempre inventiva que nos convida a fabular, temos, na biblioteca de Faoro, um arquivo individual e coletivo. Como todo arquivo, ela está repleta de presenças e ausências. Nela se inscrevem as relações de poder presentes na formação e circulação − sempre desigual − de conhecimentos no sul-global. Os livros são documentos da história, ao mesmo tempo individuais e coletivos: ajudam a recompor a trajetória do intelectual, mas também são peças vitais que nos dão a conhecer algumas características culturais da sociedade.


Este texto é fruto de minha pesquisa em estágio pós-doutoral realizado no Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), sob a supervisão da prof. Lilia Moritz Schwarcz e com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Nessa pesquisa, trabalho os diários escritos por Raymundo Faoro entre 1943 e 1952, um corpo documental de conteúdo totalmente inédito gentilmente cedido pela família de Faoro na pessoa de seu filho André Faoro, a quem sempre agradeço.


Paulo Augusto Franco de Alcântara é doutor em Antropologia Cultural pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo e membro da ANPOCS PÚBLICA.

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