Ensaio

A façanha de Ondina Fachel Leal

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A façanha de Ondina Fachel Leal

Tudo tem seu tempo. Há pouco mais de um ano, mais exatamente em 24 de agosto de 2021 (coisas de quem aprendeu a pesquisar no histórico de mensagens do famigerado Whatsapp), mandei uma mensagem para o mestre Fischer, comentando que havia ficado impactado com o texto de apresentação dele para Os gaúchos – cultura e identidade masculinas no pampa, lançado dois meses antes pela professora Ondina Fachel Leal. Depois de ler o livro, fiquei ainda mais impressionado. Por várias razões, entre elas uma que diz respeito, justamente, à passagem do tempo. Mas antes que eu prossiga, deixem-me acrescentar a este parágrafo de abertura a informação de que o livro em questão foi, ano passado, finalista, tanto do nosso Prêmio AGES de Literatura, na categoria Não ficção, quanto do incensado Jabuti, de projeção nacional, também na categoria Não Ficção, no subtema Ciências Sociais. 

Retomando: se eu me demorei em escrever esta pensata, caros leitores e leitoras, o que dizer do maravilhoso trabalho de Ondina, publicado, originalmente, em 1989, em inglês, como tese de doutorado em Antropologia na Universidade da Califórnia, em Berkeley, e que somente em 2021 ganhou uma versão em português (tradução dela mesma, em edição da Tomo Editorial)? Passaram-se, portanto, mais de 30 anos. E a obra nada perdeu de sua relevância, muito antes pelo contrário: parece que ganhou ainda mais importância em tempos em que debater e compreender as identidades regionais torna-se tarefa imprescindível. O livro, com versões em brochura e capa dura, tem prefácio de Luiz Fernando Dias Duarte, professor titular de Antropologia do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, e apresentação, como já referi, do Fischer. Ali, entre tantas outras observações pertinentes, Fischer remete os leitores a uma entrevista dele com Ondina, veiculada aqui mesmo, na Parêntese. 

Antes de prosseguir, uma observação importante: este texto não é uma resenha. É tão somente uma espécie de declaração de amor à obra. Isto porque nos últimos 12 anos, por aí, tenho lido e, também, produzido diversos livros sobre aspectos da história, da cultura, da economia e do desenvolvimento do Rio Grande do Sul. O tema foi surgindo meio ao acaso na minha vida, e, à medida que fui me aprofundando, mais e mais interesse tem me despertado. A coisa começou lá em 2008, quando escrevi os textos e editei o livro Rio Grande do Sul – seu povo, sua alma, uma espécie de grande álbum que incluía também uma exposição com as belíssimas fotos exclusivas produzidas para o projeto, retratando a presença atual e as contribuições de oito “etnias” na nossa formação histórica, econômica e cultural: portugueses, espanhóis, italianos, alemães, negros, indígenas, japoneses e judeus. De lá para cá, o tema da cultura local e da identidade regional, urbana e rural, nunca mais se afastou de mim. E eu diria que um dos momentos mais marcantes nesses últimos anos foi justamente a leitura do livro de Ondina. 

A obra retrata a experiência da autora junto a um grupo de gaúchos em uma fazenda na fronteira do Brasil com o Uruguai, na região do Pampa gaúcho. A palavra “gaúchos”, neste caso específico, diz respeito a peões campeiros, trabalhadores rurais da pecuária extensiva com quem ela conviveu muito de perto de 1986 a 1988, em um trabalho riquíssimo sob o prisma da etnografia e da identidade social daquela gente. Trata-se de uma jornada intelectual profunda e de muita coragem, que não se furta a abordar um tema bastante áspero, inclusive do ponto de vista pessoal dela, o qual não anteciparei: apenas refiro que um dos capítulos se chama “Suicídio: a morte como um discurso final”. Para não deixar lacunas, a autora aborda também as questões de gênero e do feminino em meio a esse universo predominantemente masculino, no capítulo intitulado “Mulher, a alteridade ausente”. Registro que, mesmo tendo sua origem em um trabalho acadêmico, a leitura flui como em um romance, e dos bons. 

Algumas poucas semanas depois que conversei com o Fischer sobre o livro, chegou-me a notícia de uma outra obra que tem algumas similitudes com o trabalho de Ondina, ainda que sem a mesma potência. Refiro-me a Tempos e memórias – vidas de mulheres, da professora Céli Pinto. As coincidências: a obra também é resultado de um trabalho acadêmico realizado no início dos anos 1980, no qual se ouviu a contraparte, por assim dizer, das personagens retratadas por Ondina. Isto porque o livro reúne 16 depoimentos de mulheres residentes em Bagé, ali, na região da Campanha. Nas palavras de Céli Pinto, “pessoas comuns, situadas em diferentes lugares da constelação social; donas de casa, escriturárias, professoras, faxineiras, dentistas (…) pessoas invisíveis na cena pública, pessoas sem expressão a quem é dada a oportunidade de se exprimir”. Diferentemente do trabalho acadêmico de Ondina, que havia cumprido na época toda a trajetória prevista, trata-se de uma revisita de Céli Pinto às degravações de entrevistas feitas com apoio de algumas de suas alunas, material que nunca chegou a ser sistematizado. Ainda assim, e mesmo que a revisão final da Editora Zouk deixe a desejar, vale a pena conferir o trabalho e “ouvir” o que as mulheres entrevistadas têm a dizer sobre seu dia a dia, ainda que muitas delas, de início, tenham referido que nada havia de relevante em sua existência, muito menos algo que fosse digno de nota em um trabalho acadêmico. Esse autoapagamento já diz muito, não lhes parece? 

E não deixa de ser curioso que os universos masculino e feminino da região da Campanha tenham sido temas de dois livros cuja pesquisa remonta a 30 anos, lançados quase que simultaneamente, no tempo atual. E talvez mais surpreendente ainda seja o fato de serem ambas leituras muito necessárias para nossa tentativa de compreender quem, afinal, somos nós, os gaúchos e gaúchas. 

Isto posto, e independentemente de a vigorosa obra de Ondina Fachel Leal não ter sido a grande vencedora dos citados certames literários, o fato é que fomos e somos todos premiados desde já com essa belíssima contribuição para a cultura local e brasileira. Esta, sim, uma façanha que pode servir de modelo em outras terras. 

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