Ensaio

A ministra y su posto

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A ministra y su posto Ministra Aniele Franco. Foto: Divulgação/Ministério da Igualdade Racial

Dia desses, visitando um amigo com piscina (no verão, esses são os melhores amigos), resolvi dar umas dicas de natação para uma das crianças que lá estavam brincando. O rapazinho ficava do lado de fora da água, com o medo típico de quem não estava acostumado a nadar. Como eu nado há alguns anos, fui logo dizendo que ele não precisava ficar com medo. Depois de alguns minutos trocando palavras com o moleque, ele resolveu entrar. Mas não sem antes me perguntar “tio, tu veio aqui pra ensinar as crianças a nadar”? Mesmo dizendo que não, o jovenzinho resolveu que o melhor seria continuar acreditando que eu era um professor de esportes aquáticos. E, adivinhe: ele, que se pelava de medo antes de entrar na piscina, ao fim do dia bancava o Fernando Scherer, sempre olhando pra mim, para garantir que não o deixaria se afogar. Afinal, eu era o professor de natação contratado para lhe ensinar.  Aquela crença de que eu tinha o poder de lhe retirar o medo e ensiná-lo a nadar, possibilitou que as parcas técnicas que eu possuo no esporte fizessem um efeito incrível. 

Na clínica psicanalítica, chamamos uma crença parecida com essa de “suposto saber”. A analisanda precisa acreditar que há um saber sobre ela depositado no analista. Mas, calma: são os estudos, a supervisão e a análise pessoal – o tripé psicanalítico – que sustentam o trabalho. Ou seja, a técnica existe. Mas sempre fica um algo mais, quase místico, que precisa acontecer para que a análise tenha efeitos positivos. É preciso desejar estar em análise e esse movimento envolve acreditar que aquele ser misterioso e silencioso que escuta, “sabe”.

Enfim, a noção de Sujeito Suposto Saber só cabe mesmo no setting analítico, ali quando a transferência se produz. Mas a verdade é que muita coisa na vida é parecida. Se aquele menininho não estivesse supondo em mim um saber sobre ele, ao invés do nado, nada aconteceria, e ele ficaria olhando as outras crianças se divertindo na piscina, enquanto estaria sentado e triste.

Me digo psicanalista, e você precisa acreditar que sou, para que este texto funcione um pouco. Você precisa acreditar que eu realmente vivi essa história para que a continuação deste texto tenha alguma coerência. Não preciso dar provas. Ao contrário , é você que precisa crer, nem que seja um pouquinho. E o quê te fará acreditar? Aí depende: o desejo de ler algo corriqueiro, a esperança de rir um pouco, de ficar puto, de postar o texto no twitter pra falar mal do autor. Decide aí.

O fato é que se forçarmos um pouco, a gente escuta o suposto saber até na política. Por exemplo: aprendi desde cedo que um homem de terno e gravata era um “entendido”. Quando um político visitava minha vila, vestido com aquele paletó de linho importado, todo mundo escutava com muita atenção. Isso porque o suposto saber do homem branco está no terno – e também deve ser por isso que essa é uma das roupas mais caras que existem. O saber custa caro. Tem até quem pense que usar “terninho” nos consultórios de psicanálise é sinônimo de ser bom profissional. O mesmo vale para outras profissões. Mas a roupa não tem o mesmo efeito em mulheres. Por que será?

Quando uma mulher fala, é preciso um trabalho árduo para que a sociedade a escute. E não importa qual seu cargo, nem se ela está usando terno importado. Ela pode estar na posição de autoridade máxima – se ela disser que vai estocar vento, todo mundo vai rir, porque ela “nem sabe o que está falando”. Se uma mulher negra, num cargo ministerial, disser que um dos nossos maiores problemas hoje é o racismo ambiental, aí sim que a gargalhada vem. Logo depois, será necessário uma discussão de vários meses: “racismo ambiental existe?”, “Claro que sim”, “Claro que não”. “Ela é louca”. “Não deve nem ter faculdade”. 

Veja bem, a ministra até usa terno! Mas ninguém lhe investiu um suposto saber. Foi preciso que algum professor universitário lhe outorgasse a autoridade de um conceito. “Ah, lógico. Racismo ambiental é um problema seríssimo. Li num livro do fulano de tal”. No país do “você sabe com quem está falando” não basta saber com quem se fala. Mas de que linhagem essa pessoa veio – e principalmente, qual a cor da falante.

Este é meu primeiro texto para a Parêntese. E vocês não conhecem minha linhagem. Mas já adianto: detesto terno e nado muito mal – se você acreditou no contrário, agora alcançou algo sobre o suposto saber. Entretanto, vai precisar acreditar no meu posto, mesmo que não queira supor nada.

No trabalho analítico, a analisanda descobre que o analista não sabe tudo sobre ela, mas que é na transferência, na produção de novos sentidos, nos encontros com o erro, que se descobrirá algo encoberto pelo véu da suposta certeza sobre si. A primeira queda é cruel e dolorida. Descobre-se que ninguém possui a certeza absoluta, e que, ao contrário, estamos sempre supondo verdades que não existem. O caso da ministra de terninho me mostra isso: sempre que alguém fala algo novo e que considero uma bobagem, primeiro levo em consideração que o idiota, talvez, seja eu mesmo.


Evandro Machado Luciano, psicanalista junto à Après Coup – Psicanálise e Poesia. Membro do Grupo de Estudos em Psicanálise Amefricana na mesma instituição. Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Especialista em Ensino de Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas. Email: [email protected].

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