Ensaio

Alento para almas sofredoras: Noel Guarany

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Alento para almas sofredoras: Noel Guarany

Ao morrer, em 6 de outubro de 1998, Noel Guarany agregou à sua legenda de cantador o epíteto de mestre. Não que já não fosse visto assim por seus tantos seguidores, e continue a sê-lo pelos que tiveram sua influência depois. Mas por maior que seja, um artista vivo é passível de tropeços e sempre há alguém a considerá-lo não tão grande assim. Já a morte, ao mesmo tempo em que cristaliza a obra deixada, permite que sobre ela nasçam novos olhares, novas atenções. E assim a obra avança, e seu autor revela até entendimentos que nos passaram despercebidos. A morte reposiciona os mestres, os criadores, e com Noel Guarany não foi diferente. O artista e o homem de carne-e-osso deram lugar ao mito. 

Neste 2021 comemoram-se os 50 anos de lançamento de seu primeiro LP, Legendas Missioneiras, gravado para o selo Premier/RGE, de São Paulo. Ouvindo-se hoje os dez álbuns originais que Noel deixou, a sensação de novidade permanece a mesma, sua música não apenas não envelheceu como parece soar ainda mais vigorosa ante a pobreza de temas e melodias do atual regionalismo gaúcho. Já nesse primeiro, Noel lançava dois de seus clássicos, Filosofia de Gaudério e Romance do Pala Velho. A propósito, no mesmo 1971 tinha início em Uruguaiana a Califórnia da Canção Nativa, com o propósito de renovar o cenário musical do Rio Grande – o que Noel já começava a fazer. 

E além de tudo era um batalhador. Apoiado por gente como Barbosa Lessa (já radicado em São Paulo), foi abrindo espaços nas gravadoras e produzindo discos. O segundo, Destino Missioneiro, de 1973, tem apresentação de Lessa na contracapa. O grande folclorista fecha assim seu texto: “Agora escutem este jogral missioneiro. Respeitável como artista. E autêntico em seu orgulho de ser talvez um dos últimos baguais do Rio Grande do Sul”. O LP começa com outro futuro clássico, Milonga do Moço Novo (de Lessa) e inclui parcerias com Jayme Caetano Braun, Aureliano de Figueiredo Pinto e Apparício Silva Rillo. Jayme e Aureliano seriam sempre dois esteios. Noel estava seguro do chão em que pisava.

Em 1975, um primeiro momento de atenção nacional. Noel participa com duas músicas da histórica coleção Música Popular do Sul, Potro Sem Dono (de Paulo Portela Fagundes, faixa de abertura do volume 2) e Filosofia de Gaudério. Idealizadas e produzidas pelo publicitário paulista Marcus Pereira, as coleções que mapeavam a música folclórica de quatro regiões brasileiras (a primeira teve o Nordeste) eram um case de sucesso, com amplos espaços na imprensa.

Payador Pampa Guitarra

 No ano seguinte, em produção independente, Noel veio com aquele que talvez seja seu disco mais emblemático e conhecido, Payador Pampa Guitarra, feito com Jayme Caetano Braun e gravado em Buenos Aires, com músicos de lá, e em São Paulo. Tem Milonga de Três Banderas, Na Baixada do Manduca, Bailanta da Siá Chinica, Tobiano Capincho, Rio Manso (do argentino Cholo Aguirre) e mais. O LP circula pelo ambiente universitário de Porto Alegre e de São Paulo. Na capital paulista, o repórter gaúcho Marcos Faerman, editor do jornal alternativo de esquerda Versus, dedicado à cultura latino-americana, promove um show coletivo com grandes nomes da MPB e chama Noel para representar o RS. Poucos meses depois, o segundo show seria proibido pela censura por ser considerado evento subversivo.

É por aí que começam as (raras) apresentações de Noel em Porto Alegre. A primeira foi em agosto de 1977 no então Auditório da Assembleia Legislativa lotado. Antes, fui entrevistá-lo para Zero Hora e comecei perguntando sobre a tal música missioneira, que ele havia, digamos, inventado.

 – Sou descendente de índios, nasci e me criei naquela região. Comecei com o violão desde cedo. Quando eu quis cantar as Missões e não sabia por onde começar, fui até Assunção, e de lá fui descendo pelos campos, pelos meios rurais paraguaios. Depois entrei na Argentina, estive em Misiones, daí a Corrientes, e Santa Fé. Depois passei à fronteira do Uruguai. Mas aqui no Rio Grande não havia autoridade musical nenhuma, a não ser o Barbosa Lessa, que tinha conhecimento de causa mas não tinha quem interpretasse suas músicas. Então, dentro da poesia do Lessa, do Jayme, do Aureliano, encontrei condições de cantar as Missões e aguentar no osso do peito. Dizer: “Esta aqui é música missioneira”.

Noel Guarany Canta Aureliano de Figueiredo Pinto

Continuei meu texto: “Alguns críticos regionais costumam dizer, em forma de menosprezo, que a música de Noel Guarany é ‘acastelhanada’. A rigor isso está certo, se eles imaginarem que existe uma muralha de pedra isolando o RS dos países vizinhos. Na verdade, a música de Noel desconhece a artificialidade das linhas traçadas nos mapas e canta não o estado específico do RS português e brasileiro, mas a visão fronteirista. Para atravessar o rio Uruguai basta um barco, ou até nada, se o tipo souber nadar”.  Em 1978, voltando ao selo Premier/RGE, centrado em seu maior parceiro, vem o LP Noel Guarany Canta Aureliano de Figueiredo Pinto. Para quem ainda não sabe, a estas alturas, convém informar que Aureliano, médico e escritor, é um dos maiores poetas regionalistas gaúchos.

O próximo disco será Alma, Garra e Melodia, lançado no final de 1980 pelo selo Marcus Pereira. Escreve o próprio, no longo texto de contracapa: “Noel Guarany é um dos maiores cantores, compositores e guitarristas deste País”. Marcus assume a designação mundial de “guitarra” para o violão português/brasileiro – Noel jamais chamou seu instrumento de violão. Considero esse disco, ao lado de Payador Pampa Guitarra os mais bem-acabados. Alma, Garra e Melodia também sintetiza a cooperação com João Sampaio (então José João Sampaio da Silva), principal parceiro de Noel ao lado dos dois já citados. Além de ser um dos maiores preservadores de sua memória.

Alma, Garra e Melodia

O último trabalho antes da doença redutora, foi Para o Que Olha Sem Ver, de 1982, mais uma vez Premier/RGE. Das seis faixas, quatro têm parceria com João Sampaio, há dois motivos folclóricos, Boi Preto e Adeus Morena, e duas interpretações de Atahualpa Yupanqui, Para El Que Mira Sin Ver e Los Ejes de Mi Carreta, ambas em perfeito espanhol. Já com ele abatido, foram lançados em 1988 pela gravadora porto-alegrense Discoteca os discos Troncos Missioneiros (com Pedro Ortaça, Cenair Maicá e Jayme Caetano Braun) e A Volta do Missioneiro, em que Noel canta o lado A do LP, ficando o lado B com a voz de Jorge Guedes.

Para o Que Olha Sem Ver,

E em 2003, por fim, ouvimos ao vivo um Noel energético e político com o CD Destino Missioneiro, selo Mega Tchê. Foi a recuperação de uma fita gravada pela Rádio Imembuí em show apresentado no Cine Glória, de Santa Maria, em 1980, e guardada carinhosamente pelo jornalista e historiador Tau Golin. O show foi promovido pelo Diretório Central dos Estudantes da UFSM. Noel canta seus clássicos e conversa bastante. Diz, lá pelas tantas: “Não tenho compromisso com doutores, MTGs, governadores, deputados. Falo de uma realidade nua e crua. Claro que vai doer em alguém, mas vai servir de alento a muitas almas sofredoras”.


Discografia em LP

Legendas Missioneiras, 1971  Premier/RGE), relançado em 1977 com o título de Canto da Fronteira (Premier/RGE)

Destino Missioneiro, 1973 (Sinter), relançado em 1984 (Sinter/PolyGram, série Reprise)

…Sem Fronteira, 1975 (Coronado/Odeon)

Payador Pampa Guitarra, 1976 (independente)

Noel Guarany Canta Aureliano de Figueiredo Pinto, 1978 (Premier/RGE)

Das Pulperias, 1979 (Premier/RGE)

Alma, Garra e Melodia, 1980 (Discos Marcus Pereira)

Para o Que Olha Sem Ver, 1982 (Premier/RGE)

O Melhor de Noel Guarany, coletânea, 1984 (Premier/RGE)

A Volta do Missioneiro, 1988 (Discoteca)

Troncos Missioneiros, com Pedro Ortaça, Cenair Maicá e Jayme Caetano Braun, 1988 (Discoteca)

Discografia em CD

Destino Missioneiro, 2003 (show inédito gravado em 1980, selo Mega Tchê).


Juarez Fonseca é jornalista, crítico musical e acaba de lançar Aquarela brasileira (editora Diadorim), primeiro de três volumes que reúnem entrevistas feitas por ele desde a década de 1970.

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