Ensaio

Carnaval & Arte

Change Size Text
Carnaval & Arte

Você sabe qual o verdadeiro significado da palavra carnaval? Sabe-se que as suas raízes vêm da antiguidade, entre o Egito e a Grécia desde 520 a. C. simbolizava uma festa profana, liderada pelo Deus Grego Dionísio – carne levare, palavra que no latim dá sentido: retirar a carne ou os desejos mundanos. A expressão foi uma manobra usada pelo catolicismo para acabarem com os prazeres da carne durante o período da quaresma, consequentemente culminado com os festejos na Quarta-feira de Cinzas. No Brasil, essa relação contada pelos historiadores se estabeleceu no Rio de Janeiro, através dos colonizadores portugueses, com o nome de Entrudo. Havia também blocos que protagonizavam elementos circenses, máscaras, em suma, uma forma dos cidadãos trocarem a sua individualidade pelo prazer de se sentir livre junto aos seus pares, seres a se divertir de forma mais descontraída perante a sociedade.  

Assim, em fevereiro o universo do carnaval se veste de arte a fazer sua parte. E o movimento cadenciado dos corações por esse período já começa a transmitir sons ritmados, como num ritual de vibrações sonoras dançantes. O ano inteiro os brasileiros passam seus perrengues e conflitos existenciais e o que os salva são as expectativas, para se esbaldar neste mês como forma de unir a matéria musical com a materialidade do corpo e da alma. 

Como sou filha de carnavalescos, seria impossível deixar de realçar sobre esse movimento denominado carnaval e arte, que dá sentido ao supremo prazer de viver esses três dias, movimentando a alegria de se sentir livre, leve e solto no mundo. Vou contar algumas passagens que vivi, na adolescência, junto com minha família, sobre os vínculos deste ziriguidum cintilante de purpurinas e coloridos prazeres momescos, a viver na contagem regressiva de dezembro a janeiro e até chegar o derradeiro dia dos desfiles em fevereiro. 

Nasci num dos mais antigos arrabaldes de Porto Alegre, o bairro Santana, que foi inicialmente habitado por famílias de negros humildes, pessoas simples que não tinham condições financeiras para irem morar em outros lugares mais habitáveis, pois aquele trecho era insalubre e difícil de residir, por haver constantes inundações. O nome do bairro foi inspirado na sesmaria de “Santa Ana”, que abrigou negros fugidos vindos de outras regiões que ali se instalaram.

A primeira denominação do local foi dada em 1885: rua dos Pretos Forros. Depois trocaram de nome para 28 de Setembro (a data da aprovação da Lei do Ventre Livre). A nossa residência se fixou por ali e era cortada pelo arroio Dilúvio, da Av. Ipiranga. Com a passagem do tempo, surgiram melhorias, e algumas dessas casas migraram para arredores mais distantes, como a área da Restinga. Naquela época meu pai fincou pé e não saiu de sua humilde casa. 

Desde então muita coisa mudou. Após trocarem a denominação daquela velha rua, logo se tornou uma lugar predominante de classe média, abrangendo muitas residências, clubes, como o Rajadinho, o Primavera o Ypiranguinha, associações que tiveram conexão com atividades carnavalescas, como alguns blocos humorísticos – “Saímos Sem Querer” , “Tô Com a Vela” e “Olha os Modos”, as tribos carnavalescas Os Bororós e os Tapuias, assim como o bloco somente de mulheres “As Iracemas”, e também os grupos carnavalescos “Céu Azul” e o “Aratimbó”. Houve por alguns anos duas escolas de samba que fizeram seus ensaios itinerantes neste bairro: “Aí vem a Marinha” e a “Copacabana”. 

A mais antiga Escola de Samba de Porto Alegre teve também seu início por esses arredores – os Bambas da Orgia. Outra nascida nesta região foi a Academia de Samba Praiana. Atualmente a grande E. S. Fidalgos e Aristocratas, saiu do bairro Montsserat e se instalou no bairro Santana. Mas a que até hoje é resistência em seu local de origem, desde as décadas de 50/60 e ainda permanece por lá, é a Escola de Samba Acadêmicos da Orgia. Esta escola vive por décadas nessas adjacências onde o carnaval de rua predominava, pertinho dos vários coretos margeando as comunidades de fluência carnavalesca. 

Logo, é importante ressaltar que o bairro Santana no passado por muito tempo reverberou ser excelência foliona. Ali o coreto era comandado por dona Maria Bravo, com o apoio de Rei Momo, Vicente Rao. Mas apesar de estar quase extinto o carnaval de rua, pelos subúrbios porto-alegrenses havia a resistência dentre os coretos a predominar com respeito àquela área exclusiva da Santana, pois este era o local mais disputado pelas escolas de samba para se apresentarem depois do coreto Oficial. 

Relembrar sobre os acontecimentos que permanecem em minha memória é a melhor forma de me entregar às reminiscências e dividir com vocês os momentos vividos com meus familiares. 

Foi na década de 50 que meu pai, Miguel O. Gonçalves, participou como um dos compositores precursores a embalar com suas marchinhas carnavalescas os blocos humorísticos Tô com a Vela e Saímos sem Querer. Os homens se vestiam com adereços femininos e iam batucar nos coretos e pelas adjacências do bairro, cantando as famosas marchinhas, algumas de seu Miguelzinho. Inclusive ele teve uma de suas marchinhas, com o nome de “Diabo”, censurada pelos órgãos competentes, mas isso foi um tiro pela culatra, pois a tal marchinha se tornou um dos maiores sucessos musicais dele na época. 

Com esse instinto notório pelo carnaval, meu pai um dia percebeu que seu filho Darci (Cy), ao tocar com suas latinhas de leite condensado e de sardinha, era um guri que batucava num ritmo cadenciado, pelas margens do arroio, em meio ao mato cerrado daquele local. Aí ele falou para o padrinho do Cy, seu Valdemar, e com o aval da dona Carlinda, mãe do garoto, deu a ideia de montar um bloco somente de crianças. A junção dos guris foi genial: eles começaram a ser notados e foram convidados para tocarem nos coretos de outros bairros, culminando com o desfile no coreto oficial. 

Logo a famosa revista O Cruzeiro fez uma reportagem citando o bloco mirim do bairro Santana de Porto Alegre como uma novidade no meio carnavalesco de nossa cidade. Com o passar do tempo os meninos cresceram, vieram novos adeptos a incentivar e a renovar o cenário, para se transformar em uma potente escola de samba. E assim no ano de 1960 trocaram o nome do bloco para Acadêmicos da Orgia.  

A minha participação como destaque na agremiação foi em 1972, já na nova diretoria, com a direção do enfermeiro e ator de teatro Seu Rubens Silva e o seu filho, acadêmico de Direito, Aimoré Silva. Eles levaram para avenida o tema-enredo “Lendas Brasileiras”, no qual fui convidada a participar como a Índia Naiá, que se transformou na flor Vitória Régia, a majestosa planta aquática com suas raízes submersas servindo de berço no cenário do Rio Amazonas. 

Neste ano a escola de samba conseguiu o bicampeonato, um fato que orgulhou muito os integrantes da família Gonçalves, por terem contribuído para esse sucesso. Na continuidade participativa com esta agremiação, fui secretária executiva, acolhendo adesões de componentes, fazendo registro de carteiras dos associados, participando por bons anos no auxílio aos projetos, contribuindo com a inauguração do Botequim Verde e Branco, convidando artistas e cantores para contar suas histórias de vida, tudo regado a muito samba e cerveja no salão da escola, e participando em outros eventos fora do espaço da escola, como jurada (avaliadora) de carnaval, pelo interior do estado, até numa cidade fronteiriça do Uruguai. 

Por anos a escola honrou com inovações no padrão de agregar componentes, que fizeram nome e foram se destacar em outras agremiações. Logo isso serviu como um marco de destaque a Verde e Branco da Ipiranga a se tornar uma das escolas de samba mais queridas e amadas, até por aqueles que nunca desfilaram com ela.

Em 2010, nas Bodas de Ouro da Escola Acadêmicos da Orgia, seguimos com um projeto literário contando o processo histórico do nascimento de seu pavilhão, assim colocando em prática a oportunidade de escrever a sua trajetória num livro solo e ainda participando, junto com o compositor Carlos Alexandre Rodrigues, na composição do samba enredo.

Atualmente o Bloco da Lage, Maria do Bairro, Bloco do Isopor, Galo do Porto, Império da Lã, Tucurutá, Deixa Falar, entre outros, resistem e fazem seus desfiles na Cidade Baixa e Orla do Guaíba. Porém, tal modernidade e a visão dos governantes não enxergam com bons olhos a importância deste movimento que visa gerar o turismo para a região, num processo de disseminar valor a cultura identitária própria de nossa cidade. 

A maioria dos políticos brancos, influenciados pelos rumos de desenvolvimento das grandes metrópoles, por muitos anos tentou descaracterizar o nosso carnaval, levando as agremiações para locais de difícil acesso, assim como aconteceu há duas décadas, com a instalação no Complexo Cultural do Porto Seco, na zona Norte. Este nome já se presta para uma analogia, sobre o significado da palavra “seco”, porque é assim que sinto a ida de nosso carnaval para aquela área da cidade. É uma expressão que remete a se esvair, evaporar-se. 

As grandes agremiações perdem a dignidade por se sentirem desprestigiadas, num local distante, implicando um deslocamento difícil para a maioria da população pobre, que frequenta o nosso carnaval. Diferente do que seria o ideal, um lugar mais central e de fácil acesso. Desde que foi inaugurado, pelo ano 2000, fizeram promessas sobre aquele espaço deserto, que seria de todos, inclusive de desfiles cívicos, o que nunca aconteceu, além de até hoje não terem feito arquibancadas fixas. Apenas permanecem os barracões, com precárias condições. A cada ano os políticos inventam formas de amenizar esses problemas, mas são raros os que têm boas intenções. O que se percebe são formas inventivas de tentar conseguir votos para as reeleições futuras. 

Entretanto, nós, fiéis carnavalescos, não nos abalamos diante desses cenários tristes dessas políticas de restrição. Seguimos com esperança de melhorias nos novos ciclos e firmes com o propósito de dar continuidade a este processo social, que tanto nos orgulha.

Bom carne levale!  Evoé!


Delma Gonçalves é Poeta & Compositora.

@delmagoncalvesmattos

RELACIONADAS
;
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.