Ensaio

Coligay e Maré Vermelha: experiências de torcidas gays no Rio Grande do Sul

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Coligay e Maré Vermelha: experiências de torcidas gays no Rio Grande do Sul Torcida organizada Coligay - Wikimedia Commons

“Começam a proliferar, no Brasil, as torcidas gay. Em breve, creio, todos ou quase todos os grandes clubes a terão, embora a reação de Márcio Braga contra um grupo do gênero que quis se organizar no Flamengo. A verdade, porém, é que a coisa cresce…”

A fala acima é de uma coluna de 1979, de autoria do então jornalista da Zero Hora, Cid Pinheiro Cabral. O grupo flamenguista a que se refere é a Fla-gay, torcida que, nesse mesmo ano, anunciou na imprensa que faria sua estreia em breve, prometendo um grande acontecimento. A ideia foi recebida com revolta por diversas facções da torcida rubro-negra, argumentando ser um absurdo associar o clube à homossexualidade e ameaçando impedir a presença do grupo nas arquibancadas por meio da violência. O presidente da agremiação, Márcio Braga, saiu em defesa destes e impediu a efetivação da torcida gay. 

Mas como Cid anuncia em seu texto, outros agrupamentos tiveram um desfecho mais fortuito, conseguindo superar as dificuldades impostas pelo preconceito da torcida e direção. Durante minha pesquisa de doutorado – adaptada no livro Plumas, arquibancadas e paetês: uma história da Coligay, publicado pela Dolores Editora –, encontrei referências em diversos periódicos a 22 torcidas gays no futebol brasileiro, seis delas de clubes do Rio Grande do Sul. Na maioria dos casos, os registros isolados não permitem confirmar sua atividade. Esse texto conta um pouco da história de duas que fogem a essa regra: Coligay, do Grêmio, e Maré Vermelha, do Internacional de Santa Maria (daqui em diante chamado de Inter-SM).

Embora haja certa disputa pelo pioneirismo, parece ter sido o grupo da capital a inaugurar o corajoso gênero torcedor que ousa desafiar a crença de que “futebol não é lugar de viado”. A Coligay surgiu em 1977, por iniciativa de Volmar Santos, proprietário da boate gay Coliseu. Gremista fiel, ele desejava contribuir com o time que passava por maus bocados, amargando oito anos sem títulos. Resolveu então criar uma torcida e, para tal, reuniu o público da casa noturna. O espaço foi fundamental para manter o grupo mobilizado e serviu como uma espécie de sede. Ali festejavam na noite e madrugada anteriores às partidas e, virados, já partiam para o Estádio Olímpico. 

Por isso, o nome escolhido para a torcida foi Coligay: Coli, de Coliseu, e gay da identidade comum a seus componentes (ressalvo que, apesar do nome, havia uma diversidade de pessoas não identificadas com o normativo masculino, cisgênero e heterossexual). Havia, entre eles/as, desde torcedores/as gremistas fanáticos e já frequentadores/as das arquibancadas, quanto aqueles/as que pouco se interessavam por futebol, mas que se animaram com a ideia de estarem juntos/as fazendo festa onde quer que fosse, e que, com o tempo, tomaram gosto pelo clube.

A estreia foi planejada com afinco para ser inesquecível. Confeccionaram bandeiras e túnicas tricolores, além de organizarem uma charanga. Mais do que reconhecer a orientação sexual de seus membros, faziam disso a referência performática da torcida nas vestimentas, faixas, cânticos e movimentações corporais. A intenção não foi bem-vista de cara. Houve ofensas e tentativas de agressão. A reação negativa condiz com a sociedade conservadora, machista e homofóbica da época, características essas não raro exacerbadas no contexto do futebol. Algo lamentavelmente ainda presente até hoje.

Mas acompanhados de seguranças da boate, contando com apoio de “pessoas importantes” e sabendo, estrategicamente, negociar seu espaço com os torcedores “machões” e com o próprio Grêmio, a torcida conseguiu seguir atuante. Jogo a jogo o grupo cresceu e foi ficando conhecido por sua vibração intensa e constante nas arquibancadas. Como dito em reportagem da revista Placar:

“Superava em animação as outras, batendo seus tambores e berrando”.

O apoio ainda rendeu frutos. Logo no ano de estreia da torcida, o Grêmio deu fim a uma seca de oito anos sem títulos, conquistando o Campeonato Gaúcho. 

Ficou então com a fama de “pé-quente” e teve sua contribuição reconhecida. Foi convidada pelo clube, junto a outras três torcidas organizadas, para desfilar no Estádio Olímpico na festa de comemoração ao título. E na edição do jornal Zero Hora do dia seguinte à conquista, foi escolhida como o destaque no texto dedicado à torcida gremista.

A Coligay seguiu ativa nos anos seguintes, acompanhando a reviravolta vitoriosa do Grêmio, que foi campeão Brasileiro, da Libertadores e Mundial no período até 1983. Contudo, no início da década de 1980, o grupo acabou se desarticulando por questões internas. O líder Volmar Santos precisou retornar para sua cidade-natal, Passo Fundo, para cuidar de sua mãe, e seu substituto não conseguiu ter o mesmo sucesso nos desafios de comandar uma torcida. Houve até mesmo uma tentativa de retorno após essa desmobilização, mas que pouco durou.

Enquanto isso, no centro do estado, a Maré Vermelha havia sido criada alguns anos antes e seguia em atividade. A Maré, como carinhosamente costuma ser chamada, estreou nas arquibancadas em 1979. O nome tem a ver com o fenômeno ocorrido no ano anterior à sua fundação, quando animais mortos vinham aparecendo na praia do Hermenegildo, em Santa Vitória do Palmar (RS). Um acidente ecológico associado ao fenômeno chamado de “maré vermelha”. Diante do impacto e das dúvidas acerca da veracidade do diagnóstico, o termo ocupava os noticiários de todo o estado, levando os torcedores que fundavam a nova torcida do clube alvi-rubro a adotá-lo.

Na época, a cidade de Santa Maria tinha poucas atividades de lazer que atraíam a comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros (LGBT+), que precisava divertir-se às escondidas, em guetos próprios. Um dos espaços possíveis era a ala gay da Escola de Samba Vila Brasil. Um grupo que já frequentava esse espaço resolveu, então, criar uma torcida. Movimento similar tentou ser desenvolvido no Riograndense, rival municipal do Inter, mas a rejeição desse clube impossibilitou sua existência. A Maré Vermelha acabou sendo a única torcida gay da cidade. A proximidade entre os pertencentes à comunidade LGBT+ de Santa Maria fez, então, com que a torcida ganhasse cada vez mais pessoas interessadas em partilhar daquele tempo e espaço de diversão.

De forma similar à congênere gremista, ela chamava a atenção no ambiente heteronormativo dos estádios. Marquita Quevedo, que integrou a torcida, afirmou em entrevista que não havia tentativa de se camuflar entre os “machos alfa”. Trejeitos e afetações eram liberados e as travestis não abriam mão de suas identidades. Além disso, eventualmente a torcida organizava jogos temáticos, em que datas comemorativas eram temas para fantasias. No dia 20 de setembro, data de comemoração da Revolução Farroupilha, os/as torcedores/as fantasiavam-se de prendas. Na Páscoa, de coelhinhas. Suas manifestações também envolviam elementos “menos controversos”, como coreografias e cânticos, acompanhados da charanga da Vila Brasil.

Se a Coligay parece ser a vencedora na disputa pelo pioneirismo, a Maré goleia no quesito longevidade, tendo permanecido ativa por cerca de 15 anos. O tamanho da torcida variou ao longo desse tempo. Como é comum a toda torcida, alguns/algumas componentes acabavam abandonando o grupo, enquanto outros/as entravam, garantindo sua continuidade. Para isso, também foi fundamental a capacidade de estabelecer uma boa relação com o clube e com outras torcidas, lidando com desconfianças e rejeições que certamente receberam. Sinal do acolhimento conquistado é o fato de um antigo roupeiro do clube, “Mano”, ter participado da torcida.

As atividades da Maré foram interrompidas quando uma discussão entre o líder da torcida Marcelino e um dirigente do Inter-SM acabou em uma agressão ao torcedor. Marcelino esteve à frente da mobilização da Maré Vermelha ao longo de toda sua trajetória, algo que agravou o significado da atitude. Ainda que muitos dos/as antigos/as integrantes tenham continuado a frequentar as arquibancadas da Baixada Melancólica – estádio do Inter-SM –, aquele ato de violência acabou dando fim à torcida.

Se esse foi o estopim para a desarticulação do coletivo, o surgimento da epidemia da AIDS no Brasil em meados da década de 1980 também vinha contribuindo para tal processo. Matias, um ex-integrante do grupo, contou em reportagem ao site Desacato que “alguns torcedores da Maré saíram porque tinham medo de sofrer agressões por conta do que alguns chamavam de ‘câncer gay’. Começou ali a ruptura do nó na relação, até o dia em que a Maré Vermelha deixou de fazer parte do Esporte Clube Internacional”.Na atualidade, não temos torcidas gays tão explicitamente identificadas frequentando os estádios brasileiros, o que mostra o quão desafiador é superar os preconceitos vigentes em nossa sociedade e, em especial, nesse esporte. Relatos de integrantes da Coligay e da Maré evidenciam a importância que essas torcidas tiveram em suas vidas, servindo como um espaço de sociabilidade, alegria e orgulho. O fato de estarem em uma torcida gay era fundamental para que pudessem se sentir acolhidos e seguros no ambiente futebolístico que sempre lhes foi inóspito. Uma fala de Marquita, travesti que pôde vivenciar o futebol por meio da Maré Vermelha, ilustra a importância que tais torcidas têm:

“Eu acho que se eu não tivesse participado daquela torcida, eu não seria Marquita hoje. Que as pessoas respeitam, que foi militar em busca de um direito, de uma causa. Construí essa pessoa que eu sou através da Maré Vermelha, porque a gente passava por vários processos, era a questão do preconceito, e a gente rompeu com essa barreira dentro de um estádio de futebol, que era só homem, que era só isso. E nós tínhamos essa coragem. Eu acho que isso me fortaleceu, me ajudou muito para eu ser a Marquita hoje. […] Se eu não tivesse participado da Maré naquele processo, eu não sei se eu seria Marquita, militante, do contato, construindo para os outros também”.


Luiza Aguiar dos Anjos

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