Ensaio

Coutinho no Globo Repórter: cinema de contrabando

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Coutinho no Globo Repórter: cinema de contrabando Cena de "Seis Dias em Ouricuri" (1975), de Eduardo Coutinho. Reprodução

Antes de fazer história com Cabra Marcado para Morrer, o diretor mostrou na TV o Brasil que a ditadura queria esconder

Do participante interessado do Seminário de Cinema do MASP, em 1954, com um pé quase fora da Faculdade de Direito da USP frequentada sem convicção, ao consagrado realizador de Cabra Marcado para Morrer, em 1984, não se passaram “apenas” 30 anos: nesse tempo, Eduardo Coutinho (1933-2014) abraçou a Sétima arte, largou e voltou mais de uma vez. 


Eduardo Coutinho (Foto: Arquivo pessoal)

A definição profissional demorou, mas o cinema sempre esteve no radar: o cinéfilo infantil, que fazia fichas sobre os filmes a que assistia, o ouvinte atento das palestras de Langlois e Bazin no I Festival Internacional de Cinema, organizado por Paulo Emílio, o aluno do Centro de Altos Estudos Cinematográficos de Paris (o prestigiado IDHEC, bancado com os 2 mil dólares levantados no programa O Dobro Ou Nada, da TV Record, respondendo sobre Chaplin), a parceria com Leon Hirszman e a união com o CPC da UNE, as colaborações como roteirista, os primeiros filmes, de ficção. Mas por um motivo ou outro, geralmente a grana curta, Coutinho de tempos em tempos refugiava-se no jornalismo: foi copidesque e redator das revistas Visão e Realidade e faz-tudo no Jornal do Brasil, onde chegou a publicar críticas. Até que recebeu um convite para trabalhar na Rede Globo. Um, não, dois: o primeiro, para a redação do Jornal Nacional, ele recusou; o segundo, topou: foi juntar-se à equipe do Globo Repórter (GR). E foi na atração global que Eduardo de Oliveira Coutinho, cuja data de nascimento completou 90 anos há pouco – 11 de maio de 1933, em São Paulo – encontrou o seu cinema.

Era agosto de 1975 quando assumiu no GR para desempenhar várias funções. Trabalhou no núcleo carioca – havia outro em São Paulo – do programa: o diretor, Paulo Gil Soares, ex-assistente de Glauber em Deus e o Diabo na Terra do Sol, foi quem o convidou. O Globo Repórter, que à época era uma espécie de trincheira de resistência do Cinema Novo na TV – Walter Lima Jr., João Batista de Andrade, Paulo César Saraceni e Joaquim Pedro de Andrade passaram por lá –, oferecia estrutura profissional para trabalhar, bom salário, pago em dia (Coutinho, então, podia sair do aperto) e um grau de liberdade inimaginável, especialmente em tempos tão sombrios. Coutinho ficou até 1984 e dirigiu 6 documentários para o programa: Seis Dias em Ouricuri (1975), Superstição (1976), O Pistoleiro de Serra Talhada (1977), Theodorico, Imperador do Sertão (1978), Exu, uma Tragédia Sertaneja (1979) e O Menino de Brodósqui (1980). Com exceção do último, sobre Portinari, todos se passam no nordeste. Pelo menos dois deles são clássicos – e se encontram facilmente no YouTube.



Em Seis Dias de Ouricuri (1976), o tema mais imediato é a seca, mas Coutinho aproveita a estada na cidade pernambucana para falar sobre uma série de questões sociais que deveriam estar na ordem do dia, porém eram abafadas para não comprometer a imagem de nação triunfante propagada pelos ditadores do momento. Além disso, utiliza um método de entrevista que será exacerbado depois em Theodorico, Imperador do Sertão para revelar verdades escondidas: ele finge acreditar na fonte para, logo em seguida – ou até mesmo no exato momento da conversa –, mostrar as contradições do que acabou de ouvir. Coutinho é “contrabandista” no conteúdo e na forma. Na abertura do programa, vemos num mapa a localização da pequena cidade e, em seguida, a câmera já começa seu passeio. Um locutor fala à comunidade pelo serviço de alto-falantes do único cinema local. Ouricuri não tem serviço de telefones interurbanos, nem de rádio. “A seca agravou esse quadro de precariedade. O gado emagreceu ou morreu, atingindo grandes e pequenos proprietários”, diz o outro locutor – o do programa, Cid Moreira. Tanto as colheitas destinadas ao comércio quanto à subsistência se perderam. A dona de um estabelecimento comercial manda seus funcionários fecharem as portas, com medo que populares famintos o invadam. Um rapaz diz que as pessoas estão ali em busca de trabalho, mas não há nem ferramentas, nem mantimentos.

Outros trabalhadores queixam-se de não ter o que comer. Um funcionário do governo diz a Coutinho que há centenas de candidatos para trabalhar e a todo momento chegam mais. Admite, porém, que a alimentação, que deveria ter chegado naquele dia, não veio. Um trabalhador dirige-se à reportagem e mostra uma gamela com uns poucos grãos: “Doutor, é o seguinte: aqui é mercadoria pra cinco comer”. Outros homens falam de seus precários hábitos alimentares. E então surge um dos grandes personagens de toda a obra de Coutinho. 

Um rapaz, agachado, mostra para a câmera a raiz de um vegetal que foi obrigado a comer por não haver mais nada com que se alimentar. A câmera o acompanha em sua longa explanação sobre tudo o que já foi obrigado a ingerir para não morrer de fome, culminando com um tubérculo que nem gado come: “quem come é os porco”, diz o homem, numa sequência que dura exatos três minutos e onze segundos sem cortes – deve ter sido um recorde televisivo. Ele define o drama local: “A necessidade obriga. Porque só tinha em casa, malmente, água no pote”.

Na sequência, Cid Moreira dá a entender que as coisas estão sob controle: “Em frente ao prédio de atendimento aos flagelados, agricultores se alistam nas frentes de trabalho. Mas outras oportunidades de emprego também aparecem”. Coutinho entrevista outro funcionário governamental, que garante que quem se alistou ali antes está satisfeito. Mas pondera: “Dessa vez quero saber quem tem vontade e quem tem documentos. Porque o serviço de Sobradinho só recruta o pessoal que estiver documentado”. Ele elenca as possíveis vantagens de se alistar na empreitada: diz que a companhia “se encarrega de pagar a passagem e qualquer despesa que tiver de viagem” e quem for contratado irá receber “o salário mínimo da região, incluindo três horas-extra”, perfazendo 748 cruzeiros. No momento em que fala da oferta, o sujeito olha fixo para a câmera, como se estivesse tentando convencer, além dos possíveis candidatos, a equipe de filmagem, a audiência e o próprio governo que o contratou para divulgar algo que nem de longe parece atrair os trabalhadores famintos. 

Coutinho, com uma simples entrevista, só com a colocação da câmera no rosto do funcionário e fazendo perguntas simples e certeiras, consegue sutilmente desmascarar o discurso oficial, a exclusão social, o trabalho precário e a burocracia governamental que mais afasta do que oferece oportunidades. O que é confirmado logo depois: um homem diz que não vai porque não tem os documentos necessários para obter trabalho; outro pondera que não tem condições de tirar o documento. Um idoso desabafa: “E eu aqui atrás de um meio de acudir meus filho e trabalhar na construção, pra modo de dar de comer pra minha família, que tá se acabando … (…) E eu sou um homem que gosta de trabalhar”. Ele plantou, mas com a seca perdeu tudo. Desesperado, apela à equipe de filmagem: “A vosmicês é quem eu posso fazer as minhas queixa do que eu tô sofrendo”.   

Na sequência, Coutinho conversa com o padre da cidade – que parece sincero –, mais um representante do governo, o delegado e um médico. O funcionário governamental desfila dados da região com evidente timidez em frente à câmera: olha a todo momento para baixo, deixando claro que está lendo o que lhe mandaram ler. O delegado diz que Ouricuri não tem registro de crimes relacionados à falta d’água, mas observa “um fato interessante”: a presença de “loucos que vêm da zona rural para a cidade”. Ele quer convencer Coutinho de que a seca não causa crimes na região, mas defende, ao mesmo tempo, que essas pessoas, que ele chama de “loucas”, tornam-se “doentes mentais” (as expressões são dele) e perturbam a cidade justamente devido à… seca. Diz que são recolhidas à cadeia, garante serem bem tratadas e depois mandadas de volta aos locais de origem. 

Já o médico fala da desnutrição, das parasitoses intestinais devido à falta de saneamento e da estrutura sanitária, mas no final encontra ânimo, em meio a um universo de fome, pobreza e doenças, para defender a ideia de que a situação não é tão desesperadora assim, pois “o sertanejo, além de sofredor, é um forte, porque além de ser um desnutrido, por falta de poder aquisitivo, ele também tem uma boa resistência orgânica. Talvez seja devido a ele viver aqui respirando esse ar livre, fora das neuroses da cidade grande”. É possível que nem a ala mais ufanista do regime militar sonhasse com tão espontânea e aguerrida declaração de naturalização da miséria do povo nordestino.

Fome, seca, falta de trabalho digno, descaso com o trabalhador, preconceito contra doenças psíquicas, subdesenvolvimento, promessas falsas de governo: tudo isso vemos no documentário televisivo, de apenas quarenta minutos, atração noturna da principal emissora de TV do país e em plena ditadura – que, não é demais relembrar, contava com o apoio decisivo da Rede Globo. Além da densidade e da contundência com que retrata a miséria do povo nordestino, Seis Dias em Ouricuri demonstra os passos firmes de Eduardo Coutinho rumo ao seu projeto estético – o célebre cinema de conversa – já no primeiro documentário dirigido para a TV. Esse modelo seguiu se desenvolvendo nos programas seguintes e atingiu o ápice três anos depois, em Theodorico, imperador do sertão – um capítulo à parte na obra de Coutinho.

José Fernando Cardoso – Jornalista, Servidor Concursado da FM Cultura (107,7), Mestrando em Letras pelo PPG UFGRS, com dissertação sobre Eduardo Coutinho: O oprimido fala, o opressor se revela: Oumarou Ganda pelas lentes de Rouch, Theodorico Bezerra sob o olhar de Coutinho

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