Ensaio

Dinah Silveira de Queiroz: histórias de mulheres

Change Size Text
Dinah Silveira de Queiroz: histórias de mulheres Jaime Acioli, "Sessão do Conselho de Estado", 1922. Foto: Google Arts

A pintura Sessão do Conselho de Estado, de autoria de Georgina de Albuquerque, veio a público em 1922, por ocasião do primeiro centenário da independência do Brasil. O quadro retrata uma reunião presidida por José Bonifácio, na qual foi debatida com Dona Leopoldina, então ocupando a posição de Princesa Regente, a urgência de se declarar o Brasil independente de Portugal. A partir do discutido nessa reunião, foi redigida uma carta a Dom Pedro I – naquele momento em viagem – recomendando a proclamação da independência. 

Durante o século XIX surgiu no país um número expressivo de pintores históricos, entre os quais alguns dos mais célebres são Pedro Américo e Victor Meirelles. Porém, é somente com a pintura de Albuquerque que se tem a primeira pintura histórica produzida por uma mulher no Brasil. Esse gênero de pintura era baseado em um tipo de reprodução do corpo humano para o qual eram fundamentais os estudos acadêmicos com modelos nus – inacessíveis às mulheres por uma série de preconceitos e interdições sociais da época. Essa pode ser uma das causas de datar apenas de 1922 uma pintura histórica criada por uma mulher, quando esse tipo de arte, inclusive, já era considerado como obsoleto, conservador. 

Outro motivo é o tabu que por muito tempo não permitiu que mulheres produzissem quadros de dimensões amplas, em oposição, assim, ao que usualmente era praticado em pinturas históricas: obras de tamanhos grandes, para serem expostas em espaços públicos a um alto número de observadores. A pintura histórica, nesse sentido, se afasta das naturezas-mortas e retratos, considerados muitas vezes – especialmente quando realizados por pintoras – enquanto “prendas do lar”, feitos para adornar unicamente a domesticidade das casas burguesas. 

Essas e outras afirmações são apresentadas por Ana Paula Cavalcanti Simioni no artigo Entre convenções e discretas ousadias: Georgina de Albuquerque e a pintura histórica feminina no Brasil (2002). Segundo a pesquisadora, Georgina Albuquerque, com seu quadro, mais do que desafiar o fato de pinturas históricas serem até então exclusividade masculina no país, foi transgressora também em nível temático, pois era bastante raro que nesse tipo de obra a personagem central fosse uma mulher histórica. 

Essas reflexões de Simioni a respeito de Sessão do Conselho de Estado encontram diversas afinidades com as relações entre mulheres e história também em outros contextos. É possível pensar, antes de tudo, na história como um local por muito tempo negado às mulheres, seja enquanto indivíduos produtores dessas narrativas, seja enquanto suas personagens e agentes. O fato de a história, além disso, ter como maior enfoque os acontecimentos da vida pública, exclui parte significativa da presença feminina, dados os cerceamentos que restringiam muitas mulheres à esfera privada. 

De diferentes maneiras, essas questões também tiveram impacto na produção literária de ficções históricas de autoria feminina. Apontar com precisão qual teria sido, no Brasil, a primeira obra desse tipo escrita por uma mulher, ou mesmo aquela que primeiramente colocou as personagens femininas em um papel decisivo, é uma tarefa arriscada. Não é arriscado afirmar, porém, que de modo semelhante a Georgina Albuquerque, a escritora Dinah Silveira de Queiroz ocupou um espaço, em sua época, pouco habitado por mulheres, e fez de suas narrativas de fundo histórico um território em que eram privilegiadas as personagens femininas.

Dinah Silveira de Queiroz nasceu em São Paulo em 1911 e, apesar de pouco lembrada atualmente, teve uma carreira literária de mais de 40 anos. Sua obra de estreia foi o romance Floradas na serra (1939), título de grande sucesso da editora José Olympio. Em 1954, a autora recebeu da Academia Brasileira de Letras o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto da obra, sendo a primeira mulher a conquistar tal feito. Em seu discurso durante a entrega dessa premiação, Dinah abordou uma pauta sobre o qual ela falava já há alguns anos: a demanda de que fosse alterado o estatuto da ABL, de maneira a permitir o ingresso de mulheres entre os acadêmicos. Somente em 1977, quando a instituição completava 80 anos de existência, se tem a primeira mulher entre os imortais: Rachel de Queiroz – prima do primeiro marido de Dinah, daí a coincidência de sobrenomes. Em 1981, Dinah se torna a segunda mulher a entrar para a ABL, ocupando a cadeira número 7 — a mesma a que Conceição Evaristo foi candidata em 2018. 

Dinah era uma presença constante nos círculos culturais e intelectuais de sua época, e chegou a exercer a função de Adido Cultural da embaixada brasileira em Madri na década de 1960. Sua obra, bastante variada, contempla romances, contos, teatro, ficção científica, literatura infantojuvenil. A escritora também foi uma célebre cronista, tendo publicados em periódicos de diferentes estados do Brasil, além de ter assinado seções regulares em veículos como o Jornal do Comércio (RJ) e o jornal A Manhã (RJ). Alguns desses textos integraram as coletâneas Quadrante 1 (1962) e Quadrante 2 (1963), ao lado de nomes como Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Fernando Sabino, Manuel Bandeira, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga; em 1969, no livro Café da Manhã, foram reunidas crônicas dedicadas a três das cidades em que Dinah residiu: Rio de Janeiro, Moscou e Roma. Sua produção cronística, que conta com milhares de textos, foi encerrada somente pouco antes do seu falecimento, em 1982. 

Além da crônica, a ficção histórica também foi responsável pela grande notoriedade da escritora. Isso se deu principalmente com a publicação de A muralha (1954), livro que chegou a ganhar diversas edições também fora do Brasil, além de algumas adaptações para televisão, rádio e história em quadrinhos. Participam também do grupo de ficções históricas da autora outros dois romances: Os invasores (1965) e Margarida La Rocque: a ilha dos demônios (1949). A leitura em conjunto dessas três obras permite observar a repetição de uma série de características: problematizações sobre o ato de narrar e o diálogo com os mais variados textos da literatura, da mitologia e da história são alguns exemplos. A mais evidente dessas características, e possivelmente a mais importante, é o papel de destaque ocupado pelas personagens femininas. Assim, iniciando a partir de hoje, em um total de quatro ensaios, apresento um panorama de como Margarida La Rocque, A muralha e Os invasores foram construídos em torno de mulheres, reimaginando suas histórias não contadas por meio das possibilidades oferecidas pela ficção de Dinah Silveira de Queiroz. 

Dinah Silveira de Queiroz. Foto: Autor desconhecido


Ana Cristina Steffen é natural de Porto Alegre, é Doutora em Letras – Teoria da Literatura (PUCRS, 2023). Sua atuação como pesquisadora está voltada principalmente às áreas da literatura brasileira, teoria e crítica feministas e à obra da escritora Dinah Silveira de Queiroz. Atualmente é servidora pública da Secretaria de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul. 

RELACIONADAS
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.