Ensaio

Entendedores entenderão: a bota gigante transformou o homem em menino

Change Size Text
Entendedores entenderão: a bota gigante transformou o homem em menino Botas que pertenceram a Francisco Ângelo Guerreiro (Foto: Solange Brum)

Numa destas manhãs já quentes de Porto Alegre ingressei no Museu Júlio de Castilhos. Lá dentro corre um ventinho muito agradável. Não há ar-condicionado, janelas e portas estavam escancaradas, e se vive bem nas salas de pé direito generoso. Fui visitar a exposição “Aos 120 Nossa História”. Imperdível para todas as idades. O percurso proposto pela curadoria provoca o pensamento, torce linhas do tempo, estimula associações, convida à imaginação. Em alguns momentos do trajeto, a coisa ganha ares de “gabinete de curiosidades”, com provocação ao estilo “para que servia esse objeto?”. Damos dois passos, e estamos a percorrer uma linha de tempo com hipótese investigativa bem definida – mulheres na história gaúcha. Ao entrar em uma sala nos sentimos incluídos na paisagem de motivos indígenas Kaingáng, caminhamos sobre folhas, sentimos aromas, não há como ficar alheio ao que ali está exposto. Lá pelas tantas estamos imaginando o que deveria acontecer em um quarto de casal daqueles de famílias ricas. Afinal, pelos registros, a prole era sempre extensa.

Ao longo da visita há encontros inevitáveis. O primeiro deles é com estes grandes nomes – todos de homens – que protagonizaram as “nossas façanhas”. Recebidos por Tiradentes ao pé da primeira escada, de pistola na mão, logo nos damos conta que o verdadeiro protagonista é Borges de Medeiros, que comprou o quadro do pintor e o integrou ao acervo do Estado. O quadro ali está para enfatizar a noção de República. E pelas salas e corredores vão aparecendo Júlio de Castilhos – o anfitrião da casa principal do Museu –, Zeca Neto, Assis Brasil, Flores da Cunha, Duque de Caxias – ninguém chega ao museu sem ser caminhando pela rua do mesmo nome –, Carlos Barbosa, o Barão disso, o Marquês daquilo, Gomes Jardim. 

Paro por aqui, é muita testosterona, e muita branquitude. Com tanta valentia no ar, tanta bravura nas biografias, em seguida chego na sala que tem enorme letreiro, GUERRA. Muito bem bolado isso! Nossa história é a das guerras, dos conflitos, das batalhas, do matar e do degolar. Este é outro encontro inevitável no percurso, com a violência bélica: Revolução Farroupilha, Revolução Federalista, a de 1923, a guerra guaranítica, nossa participação patriótica na Segunda Guerra Mundial, no apoio a golpes de estado, cargas de cavalaria. Descanso um pouco no Jardim dos Canhões. Me dou conta que, para tanta guerra, até há poucos canhões aqui. O que seria viver em um estado onde as “nossas façanhas” fossem a erradicação da pobreza, a plena inclusão escolar, a eliminação da fome, a cura das doenças causadas pela desigualdade social, o banimento da violência urbana e rural, a boa distribuição das terras e das oportunidades, a promoção do bem-comum sem existência de preconceitos. Não sei como é viver em um lugar assim, mas sei como é viver em um lugar onde um homem, para ter registro digno de nota na História, deve ser branco, rico e guerreiro. A exposição, do modo como está organizada, nos convoca a pensar nisso.

Ainda mais que, se há homens com essa tal masculinidade hegemônica, a exposição também mostra uma ampliação do protagonismo feminino ao longo dos séculos. Leio o que distingue cada uma daquelas mulheres, ano a ano, e me pergunto como é que nunca aprendi isso na escola, ou nos programas de televisão. Como é que não há mais ruas com os nomes destas mulheres. Como li tão pouca poesia de tantas mulheres poetas que por aqui já passaram. Como sei tão pouco da vida política de mulheres que tanto fizeram. Na minha eterna mania de examinar os nomes, me deparo com essa sucessão de nomes femininos que já saíram de moda: Andradina, Honorina, Lealdina, Nicolina, Celyna, Aurora, Revocata, Ambrosina, Otília. E no espaço dedicado aos povos originários, fica visível que temos outros modos de masculinidade.

Pelas paredes dos dois prédios do museu, há quadros e fotos antigas de uma Porto Alegre bucólica, que via mais o rio, que tinha mais céu, em que se morava em casinhas na beira da calçada. Uma multiplicidade de objetos antigos nos leva a imaginar ações, atitudes de pessoas, espaços, movimentos, classe social. São jarras, louças, objetos de asseio pessoal, máquinas de escrever, televisões, relógios, terços, porta-joias, caixinhas de costura, itens de vestuário, aparelhos de telefone, exemplares de jornais, cestaria indígena, uma lambreta, pratos e talheres, uma champanheira tão grande que nela hoje em dia caberia um engradado de cerveja, um tinteiro que poderia servir de sopeira para uma família de cinco pessoas, escrivaninhas, sofás, roupeiros, indumentária de mulheres lideranças negras, boleadeiras, chicotes, facas e punhais, arreios, estatuária de santos, maquete de barcos, carruagem, liteira. Quando for visitar, não passe correndo por tudo isso: olhe, veja, pense, imagine. E, ainda nas paredes, valorize o que é o trabalho de restauração, perceba o antigo, o restaurado, o em processo de restauração, está tudo bem indicado pela curadoria. A tarefa de pintar sobre o já pintado, e depois retirar o que foi pintado, para saber o que originalmente havia sido pintado, é algo que dá margem a indagações filosóficas. Não perca a oportunidade de refletir.

E ao cruzar uma porta, lá estava ela, na quina da sala, me olhando: a bota do gigante, e ela me viu, e eu virei menino na hora. Meu avô paterno foi caixeiro viajante, a vender mercadorias, em carroça puxada por mula, por vezes se deslocando em uma aranha – espécie de carroça leve de antigamente. Ele sabia duas coisas sobre o município de Cruz Alta. A primeira delas é que ali havia nascido Érico Veríssimo, e que a gente morava na mesma rua que ele, a Felipe de Oliveira, e que ele e a Dona Mafalda por vezes passavam na frente da nossa casa, e eram cumprimentados por meu avô. A segunda é que, ao vender mercadorias para os lados de Cruz Alta, o meu avô havia conhecido este gigante, o Francisco Ângelo Guerreiro. E falava dele para nós. E sabia quem havia feito aquelas botas, tão fora do padrão numérico. Meu irmão e eu crescemos um tanto assombrados por isso. E não faltou visita escolar para ver outra vez a bota, e visita na Feira do Livro que terminava com passagem pelo museu, e ida ao centro em que se ia ao museu, e quando eu já zanzava de office boy nos meus primeiros empregos também lá voltei. A bota sempre esteve ali.

As botas do gigante lembram as pedras da Lua – que eu via sempre na sala de exposições do Planetário de Porto Alegre; as cobras enroladas e mergulhadas em álcool – lembrança de alguns museus escolares que frequentei; as borboletas espetadas de asas abertas – que eu vi na Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul e que provocavam espirros no meu irmão alérgico; algumas aves empalhadas e com olho de vidro – que eu vi em museus cujo nome nem lembro mais, e que eu ficava olhando, e esperando ver se o olho piscava, e me assustando com o meu próprio pensamento. E a carta original de Pero Vaz de Caminha – que eu vi no MARGS no âmbito da Mostra do Redescobrimento, cercada pela aura de ser “a nossa certidão de nascimento”, e assim apresentada a um grupo de crianças de quinta série primária, uma das quais, logo que a fila andou, perguntou para outra “tu já viu a tua certidão de nascimento?” e o outro respondeu “não, mas a minha mãe disse que eu tenho certidão de nascimento”. Não devemos menosprezar estes objetos-ícones, pontos um tanto fora da curva das coleções e da vida ordinária, a remexer estômagos e mentes dos visitantes. Não há museu que viva sem tais objetos. A vida não é só o miúdo ordinário da existência. Precisamos saber que existiu um gigante, que ele se apresentou em circos, que ele usava uma bota que daria para ser berço de dois bebês já um tanto crescidos.

Eu gostei demais de toda a exposição. Quem passar por ela e se sentir entediado da visita, deve seguir pela rua Duque de Caxias, cruzar dois viadutos, um histórico e outro nem tanto, e se internar na Santa Casa, pois o tédio não é culpa do museu, é da pessoa, já agora um futuro paciente. E convido que ingresse no quarteirão hospitalar pelo Centro Histórico-cultural, última chance para ver se cura o tédio antes de dar baixa no guichê das internações. Quem estiver com muita preguiça de se deslocar até o museu, poderá apreciar parte pequena do que aqui se comentou em https://acervos.museujulio.rs.gov.br/


Fernando Seffner – Professor da Faculdade de Educação UFRGS

RELACIONADAS
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.