Ensaio

Faoro, infelizmente, ainda vive

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Faoro, infelizmente, ainda vive Foto: Arquivo Público do Estado de São Paulo

Os donos do poder, publicado em 1958 em Porto Alegre, é a obra responsável por Raymundo Faoro ser o único gaúcho a integrar o seleto grupo de autores ora denominados “intérpretes do Brasil”. Mas desde a publicação gerou polêmica. Em período de auge de ideologias marcadas por sonhos transformadores, como o desenvolvimentismo e o socialismo, mas também pela polarização da Guerra Fria, o livro era crítico ao intervencionismo estatal e acalentava uma visão de mundo liberal. Se cada interpretação é sempre interventora, pois traz consigo uma proposta de futuro, e esta subentende um lamento do que o país não foi e não é, talvez a recôndita frustração de “Os Donos do Poder” é o Brasil ter sido colonizado não por anglo-saxões, mas por portugueses. 

Não é sem sentido que a parte referente às origens lusas, portanto antes da “Descoberta”, alcance quase um terço das páginas da primeira edição. Ao contrário do país do futuro então devaneado na década de 1950, para Faoro o passado ibérico – origem das instituições brasileiras – pesava e permanecia, numa “viagem redonda”, metáfora para uma espécie de path dependence de uma história que insistia em não se transformar. Nelson Werneck Sodré, talvez o mais ilustre representante da ortodoxia stalinista, ao comentar o livro, nas palavras de Faoro, numa das poucas vezes em que este perdeu a elegância: “só faltou me chamar de filho da puta” (Caderno Mais!, FSP, 14/04/2000).

A obra repousa num tripé de inspiração weberiana, a qual o próprio Faoro, com razão, fazia questão de relativizar, pois as categorias do sociólogo alemão foram apropriadas com enorme flexibilidade e criatividade de adaptação (a ponto de os puristas discutirem se é realmente criatividade ou falta de compreensão do aparato de Weber): patrimonialismo, estamento burocrático e capitalismo político. De forma muito sintética: patrimonialismo refere-se à forma de dominação em que riqueza, bens pessoais, cargos e direitos são distribuídos pelos governantes como se fossem patrimônios seus; eles e seu corpo de funcionários administram e controlam o patrimônio público em proveito próprio, numa mistura entre o público e o privado.  

Esse seleto grupo que usufrui constitui o estamento burocrático, que nada tem a ver com a burocracia racional e impessoal que Weber associa ao Estado moderno: aproveitadores desta forma de dominação, torna-se um grupo de interesse que se amolda às circunstâncias e aos vaivéns do poder, sem apegar-se a ideologias a não ser sua própria perpetuação e ganhos (alguém ouviu falar em Centrão por aí?). Nota-se que tal segmento não necessariamente age à margem da lei: até pode, mas prefere, e consegue, criar leis em beneficio próprio. Os privilégios são legalizados e naturalizados. A igualdade jurídica entre cidadãos é ignorada. 

E o capitalismo político, talvez a categoria mais ousada teoricamente e mais polêmica, diz respeito a um sistema econômico que se guia pelo lucro e pelas rendas privadas, mas avesso ao mercado, à impessoalidade e às regras formais (aqui numa ponte com Sérgio Buarque de Holanda). Ao contrário, a participação política e a aproximação aos governantes torna-se condição para os ganhos privados, desde a concessão de sesmarias e de títulos nobiliárquicos até os financiamentos, subsídios e isenções de impostos como hoje ocorrem. O livro de Faoro invertia a interação entre economia e política vigente no marxismo então dominante, de uma relação linear que ia da infraestrutura econômica para a superestrutura política: antes que um “modo de produção”, entendia o capitalismo, tal como se afigurava nesses trópicos, como uma “relação de dominação” na qual a política é que abria espaço para o acesso à riqueza e ao poder econômico. Meritocracia, recompensa pelo risco, self-made man e outras construções que fazem parte do imaginário liberal não têm espaço nessa visão, pois a riqueza privada se faz às custas do Estado e através dele; é consequência e não causa do poder político.

A obra de Faoro desde então vem sendo discutida e, como a de outros “intérpretes do Brasil”, presta-se a muitas e controversas leituras. As críticas vão desde as estritamente acadêmicas (o uso “folgado” das categorias weberianas), as que apelam ao senso comum (como assim, uma história que não muda?) e as metodológicas  (como não há uma definição clara de estamento burocrático, este sempre vai se adaptando nas alternâncias de poder e em cada conjuntura, de modo que a análise do autor se torna impermeável ao falsificacionismo).  Chama-me muita atenção o fato de Faoro elaborar uma reconstituição da história do Brasil com “inspiração” weberiana – como costumo dizer para respeitar e relativizar tal influência – sem explorar o catolicismo nas raízes da nossa formação histórica. A variável religiosa é com certeza suposta em sua análise, mas jamais trazida à liça e explorada em Os donos do poder, o que no mínimo é estranho, já que o próprio Faoro, em outras oportunidades, associou o patrimonialismo e o capitalismo político do país à ausência de uma “Revolução Protestante” (ou seria “liberal”?). 

E o que mais intriga, além disso, é que não dá o devido peso à escravidão: não a ignora, mas nem de longe a entende como variável determinante da formação brasileira, mesmo que a obra fosse escrita menos de cem anos após a Abolição. Claro que há certa lógica interna em sua análise: como a escravidão não fora propriamente uma herança da Península Ibérica, já que recriada por aqui por necessidades econômicas, escapava de sua reconstituição histórica. Esta não privilegiava as relações de produção, à la Marx, mas abeberava-se principalmente no conceito de sociedade civil tributário de Hegel, o qual abarca as classes produtivas e o mercado independentemente da hierarquia no processo de produção e circulação (e daí a dicotomia com “sociedade política”, onde se localizaria o estamento burocrático e os “donos do poder”). Escravos, senhores, capitalistas, rentistas e assalariados estavam englobados, pelo menos num primeiro nível de abstração, na mesma categoria teórica – o que em tese não impedia, mas pelo menos ofuscava, a devida diferenciação. E aí vale o chavão de que as interpretações do país, a exemplo das teorias, devem ser analisadas não só pelo ressaem, mas também pelo que ocultam e silenciam. 

No caso de Faoro, tal “lógica interna” de sua interpretação traz outra decorrência no mínimo curiosa, que é a visão com viés positivo dos proprietários rurais, justamente em uma época na qual a reforma agrária era a bandeira mais popular da esquerda e capaz de unificar seus inúmeros matizes e facções, desde comunistas a trabalhistas, reformistas e católicos moderados. Os proprietários de terra, ao contrário de outras interpretações, como de Caio Prado Jr., Nelson Werneck Sodré, Celso Furtado e até de Gilberto Freyre, não eram vistos como o segmento social mais privilegiado da sociedade, pois a situação de status e o acesso à riqueza não provinham diretamente da posse da terra ou de escravos, mas dos cargos e privilégios estatais. Os beneficiários residiam mais nas cidades e nas capitais do que no campo. Por isso, ao contrário de boa parte da literatura sobre o Império, Faoro associa o Partido Liberal, para ele mais federalista e defensor do poder local, aos proprietários de terra, enquanto o Partido Conservador abarcaria a defesa dos interesses da Corte, dos parasitas e aproveitadores de concessões reais e dos traficantes de escravos, que se valiam de monopólios e regras de origem mercantilista e ibérica. 

A despeito das críticas e lacunas, como as já mencionadas, cabe assinalar que uma leitura diferente de sua obra emergiu na década de 1970. Como crítico do regime militar (aversão que mostrara desde as narrativas da Proclamação da República e do tenentismo), já que seus membros integrariam o estamento burocrático e seriam defensores e beneficiários do fortalecimento do poder estatal, passou a ser mais aceito pela esquerda. Faoro era crítico de Vargas por razão semelhante e comemorou a deposição de Goulart em 1964. Uma década depois, clamava pelo estado de direito e chegou até ver com bons olhos a criação do PT, “de baixo para cima”, ao contrário do que teria sido o PTB. Corria à boca pequena que havia “dois Faoros”: o liberal-conservador do livro e outro mais à esquerda, sem contar que esta, depois de muita relutância, passou a admitir a tese de que no Brasil havia uma relação predatória entre o setor público e o privado, de modo que a separação entre ambos passou a integrar a agenda de mudanças sociais mais profundas. 

A análise de Faoro ainda faz sentido hoje? A pergunta cabe a todos os “intérpretes do Brasil”, mas no caso dele sempre há acontecimentos que insistem mostrar que está vivo, mesmo para aqueles que não aceitam o conjunto da análise ou até que a repudiam. Para começar, é corrente no país o que chamo “liberalismo seletivo”: sempre a regra liberal ou impessoal é defendida para os outros; para si, sempre vale a exceção. O agronegócio, sem dúvida o setor mais pujante da economia brasileira (junto com os bancos), serve como exemplo, já que passou a adotar nos últimos anos a bandeira do estado mínimo e a crença de que o intervencionismo é um mal. Claro, mas para os outros, pois há uma bancada ruralista atenta para defender os interesses do setor junto aos governos. Há seca do La Niña? A demanda é por crédito subsidiado, linhas de financiamento estatal, situação de emergência para benefícios especiais, perdão de dívidas, alongamento de prazos… E se vierem precipitações em excesso com o El Niño? Idem. As águas do Pacífico abalam a economia, mas quentes ou frias demandam auxílio estatal.  

O estado só é chamado de paternalista quando atende os outros. A defesa do estado mínimo convive, sem constrangimentos, com financiamentos polpudos ao setor: basta entrar nos sites do Banco do Brasil e do BNDES para constatar as linhas e valores (só neste mês foi lançada mais uma liberação de R$ 2 bilhões na modalidade de custo em dólar). Note que não estou a criticar o fato de o setor primário ser subsidiado: quase todos os países do mundo o fazem, inclusive EUA e União Europeia, sem contar os asiáticos. Só que, nesses, seus representantes se assumem claramente como defensores de tal assistencialismo, levantam bandeiras nacionalistas, repudiando até com veemência as fórmulas econômicas liberais (veja-se a adesão dos mesmos a Trump e sua crítica explícita ao mercado). 

No caso do Brasil, o divórcio entre discurso e prática é maior ainda, pois se sabe que o maior impulso ao agronegócio foi dado pelo ministro Delfim Neto, na época do “Milagre” (1968-1973), que viu estrategicamente no setor uma saída de longo prazo para o estrangulamento recorrente do balanço de pagamentos; e que depois contou com os incentivos na época do II PND, no governo Geisel, com apoio de outro ministro estrategista, Reis Velloso, pois aliviava a conta do petróleo a partir da formação da OPEP. Pode-se dizer, então, que a pujança do agronegócio brasileiro é resultado de uma política de estado muito bem concebida e executada, cuja ideologia norteadora pode-se escolher num até vasto cardápio, mas com certeza neste não consta o liberalismo. 

Já os primos pobres do agronegócio, como alguns movimentos de sem-terra, não chegam a recorrer ao liberalismo como retórica, mas sofrem de mal bastante próximo: alardeiam ser de movimento “de base”, repudiam a legalização e qualquer manifestação de “oficialismo”, mas demandam não só reforma agrária, que seria sua finalidade originária, mas também subsídios, cestas básicas, pagamento de escolas de formação e outros eventuais itens que dependem de verbas públicas. Ou seja: a legalização é vista como submissão ao estado burguês, mas não pelo lado das receitas. Mas, sem pessoa jurídica constituída e CNPJ, sem possibilidade de fiscalização e demais controles, é defensável e aceitável se receber recursos públicos? Como financiar o que não existe?

O fato é que, cada vez que se quer enterrar Faoro, sai nova notícia no jornal para nos lembrar que ainda não é hora. E isso parece que independe da ideologia dos governantes, que podem ser de esquerda, direita ou centro, embora nuns governos seja maior e mais explicito do que em outros. Exemplos? O dinheiro público para financiar passeatas, motorizadas ou não, e que contam com apoio de “liberais”? E para viagens de políticos e ministros em aviões oficiais para tratar de interesses privados? E o uso de instituições de estado e seus funcionários para a defesa dos interesses dos governantes de plantão, desde ações para ganhar ou sufocar votos até outras para acobertar desvios de dinheiro ou de bens do Estado, que em qualquer país civilizado seria claramente denominados de furto? E as nomeações, indicações e trocas de cargos – dentro da lei, é claro – para benefícios pessoais ou familiares, sem qualquer critério de competência ou de hierarquia técnica? E o cartão corporativo, copa franca para o uso e abuso do dinheiro público, coberto por sigilo, e com permissão para compras e saques em espécie sem limites e não sujeitos a auditoria e/ou publicidade por “razões de estado”? 

Falando em sigilo, como entender que haja “orçamento secreto” no país, justamente no Parlamento que deveria dar publicidade e zelar pelo dinheiro dos cidadãos que representa e contribuem com seus impostos para integralizar as próprias receitas do orçamento? Como entender que membros do Legislativo e do Judiciário possam aumentar seus próprios salários, numa versão totalmente distorcida da teoria da independência e harmonia dos poderes de Montesquieu? E as leis votadas e aprovadas que vinculam os aumentos salariais de algumas a outras categorias, o “efeito cascata”, de modo a disfarçá-los e torná-los “automáticos” e revestidos de plena legalidade? E os financiamentos de bancos públicos a setores escolhidos a dedo (os “campeões nacionais”, nem sempre tão campeões…), muitas vezes a fundo perdido e a juros muito aquém dos pagos pelos demais mortais? E o “foro especial” para réus que só têm como especial os cargos, disputados a unhas e dentes não para o exercício do aristotélico bem comum, mas para prolongar os processos e se livrar das penas? 

E as isenções, subsídios e exonerações de impostos a setores econômicos específicos – cujo resultado é onerar ainda mais os outros? E as privatizações, símbolo maior do neoliberalismo, que aqui foram feitas com financiamento público do BNDES? E os partidos políticos, que por receberem dinheiro público proliferaram, criando um novo setor dentro do “estamento burocrático” – os dirigentes partidários, que usufruem de tais benefícios como se privados fossem, até porque criam regras para se perpetuar nas instâncias decisórias, sem consulta aos filiados? E os dirigentes de futebol, os “cartolas”, cujos clubes se valem da popularidade para não pagar impostos e receber polpudas verbas públicas, como para construir estádios para a Copa, muitos inacabados, outros faraônicos, num país em que as escolas e postos de saúde carecem de infraestrutura básica? 

A coisa é tão complexa que a estabilidade dos servidores públicos, até há pouco vista como um privilégio “estamental”, depois de alguns acontecimentos permitiu que nela se visse justamente o oposto: a estabilidade é a garantia para que tais servidores possam agir de acordo a lei e segundo regras de impessoalidade, mesmo sob pressão de seus chefes para que a burlem em favor de interesses particulares de autoridades superiores.

A obra de Faoro pode ter suas lacunas e problemas, mas …  se tudo isso não tem a ver com patrimonialismo, estamento burocrático e capitalismo político, então é bom nos certificarmos de que país estamos falando. A viagem até pode não ser redonda, mas é muito mais que uma poesia inspirada dizer que as aparências não enganam, e apesar de termos feito tudo o que fizemos ainda vivemos como nossos ancestrais.


Pedro Cezar Dutra Fonseca é professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS e Pesquisador do CNPq.

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