Ensaio

Gil, Caetano e a tecnologia – velhos baianos e novas tecnologias

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Gil, Caetano e a tecnologia – velhos baianos e novas tecnologias

A arte, por suas diversas representações, compreende a sua época. O artista, movimentando-se na esfera de sua existência, expressa o – seu – momento e desvela, em sua subjetividade, também a realidade do que se vive. Então, a vida e suas dimensões se tornam inteligíveis pela sensibilidade do artista. O tema deste ensaio é a relação da poética de Gilberto Gil e Caetano Veloso com a tecnologia, que, com sua natureza instrumental, compõe a existência humana e atrai a atenção e análise do artista.  

Desde muito cedo, Gil voltou seu olhar para a tecnologia. E teve contato com a cibernética através do livro de Norbert Wiener, presenteado por um amigo nos meados do século XX e, em 1974, compõe a música Cibernética. Impactado pelo pouso na Lua por uma nave russa, Gilberto Gil, em 1966, escreve Lunik 9. Era a conquista do espaço e tempo de muitas dúvidas. Gil mostrou uma face trágica e conservadora diante da tecnologia: o receio da destruição do mundo conhecido, o receio de não ter mais luar.  

Em 1969, Gil é preso e, na prisão, compõe Futurível: um futuro possível para o qual o ser humano é convidado. A canção dá voz a um dono da tecnologia, que conversa com o humano, dizendo-lhe para não se preocupar. Gil prevê que um novo patamar da humanidade seria alcançado: o corpo mais brilhante, a mente mais inteligente. Enfim, surgiria um mutante, que será mais feliz. E a felicidade será de metal, elemento resultado da técnica. É a visão poética de um futuro possível.

Em 1969, ainda preso, Gil teve acesso a um violão: compõe Cérebro eletrônico. A liberdade arbitrariamente tolhida conduziu a inventividade de Gil para “as extensões mentais e físicas do homem (…); nos comandos teleacionáveis que aumentam sua mobilidade e capacidade de agir e criar”.  O computador, chamado de cérebro eletrônico, tem reconhecida sua potencialidade funcional. Mas, em um cotejo com o ser humano, suas limitações: só o ser humano sente, só o ser humano pode pensar se Deus existe.   

Em Parabolicamará, música de 1991, as ondas luminosas diminuem a distância. Se hoje as antenas parabólicas são parte de uma tecnologia ultrapassada, em sua época aproximaram o mundo, afirmando o poder comunicacional da televisão. Nos versos iniciais, percebe-se o paralelo de uma época com menor tecnologia dos meios de comunicação e o seu desenvolvimento. E o contraste de um ser humano que via o mudo pequeno, diante de uma Terra tão vasta. Mas a Terra se vê diminuída com a amplitude da antena parabólica, potencializadora da visão do mundo. A Terra ajusta-se ao tamanho de uma antena parabólica; novas referências são passíveis de descoberta – e a tecnologia da informação reconstrói a base social com outra dinâmica e paradigmas, percebidas pelo artista. 

A tecnologia impacta o tempo, que não tem rédeas, como canta Gil. E se de saveiro [se] leva uma eternidade, com as ondas tecnológicas a velocidade é de um raio – ou o tempo que Rosa leva para arrumar o balaio. E, na metáfora, a tecnologia incorpora-se ao cotidiano, tanto quanto o balaio no corpo de Rosa.

A tecnologia na antena não parou e pariu a internet, que atrai a poética de Gil. E se o primeiro samba gravado, em 1917, foi “pelo telefone”, em 1996, pela primeira vez no Brasil, lança-se uma música em tempo real via internet.  Pela internet, como o próprio Gil comenta, “é uma das [suas] canções de louvor à techné”, evidenciando a percepção plena de uma nova era que surge, compondo o mundo com novos elementos. Um novo vocabulário (gigabytes, website, e-mail) se incorpora à musicalidade; a técnica é absorvida pela poesia. E Gilberto Gil poetiza a sociedade em rede, analisada por Manuel Castells. 

Na descrição anímica do Poeta de entrar na rede, promover um debate e reunir um grupo de tietes de lugares territorialmente separados, a organização social em modos alternativos, não mais dependentes do Estado, é anunciada. É a percepção da possibilidade comunicacional entre lugares distantes, dos lares do Nepal aos bares de Gabão. A desterritorialização, a possibilidade de construção de uma inteligência coletiva e o espaço de novos fluxos também compõem os versos de Pela internet. A compreensão da velocidade da informação e a integração da tecnologia com outros campos da vida humana, a possibilidade virtual de se levar um oriki de um velho orixá ao porto de um disquete de um micro em Taipé, integram o universo da canção. Gil cria jogos poéticos que descrevem a virtualidade real da tecnologia e a consequente construção de um realismo virtual.

Na canção Pela internet o encantamento com as possibilidades trazidas pela tecnologia digital está presente. A letra navega em uma certa utopia digital, uma crença tecno-libertária, típica do período em que há o desenvolvimento inicial maior da internet. As possibilidades de conexões múltiplas, de aproximações e de diálogos diversos, fez crer que a tecnologia democratizaria o mundo, promovendo um bem-estar generalizado. Essa possibilidade de conectar pessoas fisicamente tão distantes e diferentes despertou a crença em um messianismo da conexão digital que, assim, construiria novas intersubjetividades. 

Mas a música Pela internet foi atualizada. E, em 2017, Gilberto Gil, mantendo a mesma estrutura, retoma a canção. E nasce, com outras percepções, Pela internet 2. Agora, o invés de gigabytes, para uma fanpage são necessários terabytes – uma licenciosidade poética, pois tecnicamente não há tal exigência. Mas está presente a necessidade de mais recursos para uma melhor navegação na infomaré

O artista Gilberto Gil, para além de ser um mero narrador de seu tempo, aprofunda o seu olhar sobre a tecnologia. Em Pela internet 2, vê-se uma nova compreensão da tecnologia. Na canção Pela inernet, Gil queria entrar na rede, agora, em um exercício de autopercepção, vê-se preso na rede que nem peixe pescado. É a absorção da vida pela internet e seus algoritmos; é a perda de liberdade pela necessidade de conexão. Afinal, em uma era digital, somos livres para viver desconectados?  O ser e estar no mundo se constituem pelo pertencer e permanecer conectado à rede. E Gil canta que se é música o desejo, basta um clique. É a desmaterialização do mundo digital diante do serviço de streaming. E, escreve Gil, que até o monge no convento aguarda um Deus que virá pelo smartphone. É a onipresença e onipotência da tecnologia digital. 

Mas, enfim, é tudo muito bem bolado, escreve Gilberto Gil em Pela internet 2. Assim como a nova economia e as criptomoedas, citadas na música, que dinamizam o capitalismo digital, que encontra, nas serras peladas virtuais, conforme a metáfora de Gilberto Gil, novos elementos para explorar. A mineração de dados, com riscos de potencializar a discriminação, pode ser aqui lembrada. Afinal, diante de uma parca cultura de proteção aos dados e de uma normatividade jurídica débil para proteger a vulnerabilidade da pessoa na era digital, permite-se o desenvolvimento de uma “uma nova ordem econômica que reivindica a experiência humana como matéria-prima gratuita para práticas comerciais dissimuladas de extração, previsão e vendas.”.

Outro elemento interessante em Pela internet 2 é a larga utilização de expressões em inglês. Para uma ampla sociedade em rede global ser funcional, com ampla interação e difusão de tecnologias inovadoras, exige-se uma linguagem comum que possibilite um agir comunicativo amplo e difuso. E o inglês assume essa função. Seria ele o esperanto do mundo digital?

A análise sobre a tecnologia é aprofundada por Caetano Veloso em seu álbum Meu coco. Com a música Anjos tronchos, descortina o real, desafia a nova – ou ainda seria a velha? –  ordem mundial e revela aos povos o que está ainda [em parte] oculto. Ainda que diga não conhecer a tecnologia digital, Caetano conhece o ser humano, o seu viver. Basta: é a matéria-prima de sua genial obra. E o que canta em Anjos tronchos, chama a atenção não por ser exótico, mas por ser o óbvio

Na era digital, a história, a vida e sua projeção são absorvidas e modeladas por algoritmos. Os neurônios ganham novos ritmos. Os smartphones, como novos dispositivos formadores da sociedade contemporânea, popularizam-se. E, embora permitam o acesso à virtualidade constitutiva do universo digital e existencial humano, mantém a pessoa à margem do controle organizacional da sociedade em rede. O que há de orgânico e comum na polis é produzido tecnologicamente, em um espaço sem território e onde não há nem tempo. Mas há os anjos tronchos do Vale do Silício, que comandam só seus mi, bi, trilhões, evidenciando a concentração da riqueza mundial. Há uma nova arquitetura do modelo econômico, que se vale da tecnologia para capturar a experiência humana, que se torna a matéria-prima a ser extraída. Engendra-se uma nova ordem econômica que “reivindica a experiência humana (…) para práticas comerciais dissimuladas de extração, previsão e vendas. Uma lógica econômica parasítica na qual a produção de bens e serviços é subordinada a uma nova arquitetura global de modificação de comportamento”. De fato, os neurônios ganham novos ritmos.

Em “Anjos tronchos”, Caetano Veloso canta o controle total possível a partir, por exemplo, do tratamento de dados de localização, compartilhados entre agentes privados e governamentais. Caetano canta as camadas imbricadas da sociedade de vigilância (Stefano Rodotà) e suas incontornáveis consequências políticas, que resultam na ascensão de palhaços líderes [que] brotaram macabros no império e nos seus vastos quintais

E tem a percepção do impacto das postagens em redes sociais, que disseminam o ódio, incitam à violência e podem matar, exigindo uma nova compreensão da liberdade de expressão. O ódio, sentimento humano que se (com)partilha, preenche o vazio discursivo anônimo das redes que o propulsionam e alimentam a insociável sociabilidade humana (Immanuel Kant). No mundo digital, as instâncias tradicionais de mediação da coexistência são suprimidas e a verdade factual cede diante de narrativas. O discurso de ódio, disparado nas telas digitais, acaba por projetar a sombra de uma sociedade incivil.

Ao fim e ao cabo, como escrevera Gilberto Gil no já distante ano de 1976, queremos saber o que vão fazer com as novas invenções (…). Sobre a descoberta da antimatéria e suas implicações na emancipação dos homens (…). E o que restará de humano em uma era digital.


Plínio Melgaré – Professor da Escola de Direito da PUCRS e FMP.

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