Memórias emocionadas

Casa da Comédia: nasce um teatro

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Casa da Comédia: nasce um teatro

Quando os açorianos vieram para Porto Alegre, na segunda metade do século XVIII, trouxeram, entre costumes e tradições, o gosto pela arte. Isso era evidente nas inúmeras manifestações artísticas que aconteciam nas ruas, principalmente em dias santos e feriados, como representações de autos religiosos e histórias tradicionais lusas. No entanto, o primeiro teatro de Porto Alegre, a Casa da Comédia, só foi construído no ano de 1794, no Beco da Ópera (ou Beco dos Ferreiros), atual Rua Uruguai.

Planta O Beco da Ópera em planta de Porto Alegre de Henri Breton (1881). Fonte: Acervo digital do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. www.analuizakoehler.com.

Apesar dos 36 camarotes e da plateia com capacidade para 300 pessoas, a nossa primeira casa de espetáculos não passava de um barracão de madeira amarelo, desprovido de saguão e com apenas duas entradas: uma lateral e outra com acesso direto ao palco. Iluminado por velas, o público assistia aos espetáculos de pé, pois o espaço não possuía cadeiras. 

No palco da Casa da Comédia eram encenadas farsas portuguesas, entremezes, autos religiosos ou dramalhões históricos, mas o maior atrativo era a descontração do pitoresco lugar, ideal para rir, beber e falar alto. Homens de origem humilde formavam o público principal do teatro: sapateiros, ferreiros, artesãos, soldados, entre outros. Mulheres? Pouquíssimas, pois as que frequentavam a Casa da Comédia eram consideradas mulheres de vida fácil, sendo as atrizes classificadas da mesma forma.

Em 1797, três anos depois da sua inauguração, a Casa da Comédia foi arrendada pelo empresário Pedro Pereira Bragança, que mudou o nome do teatro para Casa da Ópera. Apesar de uma proposta mais elitizada, o sucesso da Casa da Ópera junto ao público não durou muito, pois o hábito de frequentar o teatro de forma assídua estava (como ainda está) longe de ser uma realidade. Assim, após um ano de funcionamento, a casa fechou as portas.

Alguns anos depois, em 1804, o governador da província, Paulo José da Silva Gama – um fidalgo português mais conhecido como Barão de Bagé, reformou a Casa da Ópera. Fino e culto, mas nada modesto, o barão mandou colocar, acima do proscênio do palco, os seguintes versos, em letras garrafais: “Magnífico teatro se levanta / que em gratos peitos instrução derrama; / tão alto benefício só se deve / ao mui ilustre e mui preclaro Gama”. Após a reforma, que acabou sendo uma bela propaganda para o governo, a Casa da Ópera foi gerenciada pelo padre franciscano Amaro de Souza Machado, que teve muito sucesso em sua empreitada junto ao público, pois o teatro passou a ter inquestionável caráter familiar e cristão. 

Outro momento importante desta história foi o ano de 1828, quando se criou o grêmio dramático Sociedade do Teatrinho, com direção de João Batista Cabral. Formada por um grupo de jovens da elite, essa sociedade foi matriz para outras quarenta entidades do gênero, que surgiram em Porto Alegre ao longo do século XIX.

Livro de atas da Sociedade do Teatrinho, 1831. Fonte: Palco, salão e picadeiro em Porto Alegre no século XIX, de Athos Damasceno.

Em 1835, com a eclosão da Guerra dos Farrapos, a Casa da Ópera, que já se encontrava em estado bastante deteriorado, virou uma estrebaria e, em 1839, foi demolida em função das constantes reclamações dos moradores do entorno, que apelidaram o local de “seminário de mosquitos”.

Apesar do descaso público com o nosso primeiro teatro, Porto Alegre não ficou sem casa de espetáculos por muito tempo. Antes mesmo da guerra terminar, em 1838, a Sociedade Dramática Particular (formada por um grupo de homens da elite cultural da cidade) alugou um conjunto de casas térreas na Rua de Bragança (hoje Rua Marechal Floriano Peixoto) para fundar o segundo teatro de Porto Alegre: o Dom Pedro II, que teria intensa atividade até a construção do imponente Theatro São Pedro, em 1858.

Programação do Theatro Dom Pedro II na imprensa da época. Fonte: Palco, salão e picadeiro em Porto Alegre no século XIX, de Athos Damasceno.

Em tempos de descaso e abandono de importantes espaços públicos dedicados às artes cênicas, reavivar a memória sobre a história da cidade com relação ao teatro é reconhecer que temos uma forte e longa tradição. Não à toa, Porto Alegre tem tantos grupos e artistas de teatro com ampla e qualificada atividade profissional, e que no momento se encontram na luta pela sobrevivência, diante da pandemia e do caos político do país. 

A história mostra que a resistência caracteriza os trabalhadores das artes cênicas, que seguem firmes na convicção de que “apesar de tudo” vale a pena continuar. São inúmeras as iniciativas particulares de artistas em tempos de isolamento social. Novas formas de compartilhamento da arte são engendradas, principalmente através da internet, como transmissões de espetáculos ao vivo, aulas e eventos em plataformas virtuais.

Um período difícil de necessária reinvenção, no qual a arte, independente de reconhecimento do governo ou do público, segue com o papel  de refletir e questionar o tempo presente. Que venham políticas públicas adequadas de valorização das ações artísticas da cidade, que não param.


Juliana Wolkmer é atriz, pesquisadora e professora. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRGS. Mestra em Artes Cênicas e Especialista em Pedagogia da Arte, possui graduações em Teatro e História (UFRGS). É idealizadora e produtora do canal História do Teatro.

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