Ensaio

Menor do que a soma das partes

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Menor do que a soma das partes Aos 30 anos de sua idade, o Mercosul é mais do que as placas veiculares em azul, branco e preto e menos do que a soma de seus cinco Estados Partes. A contabilidade não se explica apenas pelo fato de a Venezuela, mais novo integrante do bloco, ter sido também o primeiro a ter direitos e obrigações suspensos por transgredir o segundo parágrafo do artigo 5º do Protocolo de Ushuaia, a chamada “cláusula democrática” do mercado comum.  Concebido como uma união comercial e aduaneira no início do pós-Guerra Fria, quando a ideia de uma “nova ordem mundial” proposta pelo presidente americano George H. W. Bush era interpretada em certos círculos em termos de uma comunidade global sem muros nem desacertos, o clube do Cone Sul ganhou musculatura institucional no início do século. Foi quando o fracasso evidente de 15 anos de receitas neoliberais fez eleitores da região inclinar-se à esquerda e consagrar nas urnas alguns dos principais críticos da política anterior, como Lula no Brasil, Kirchner na Argentina e Mujica no Uruguai. Turbinados pelo boom das commodities consumidas com avidez pelo emergente mercado chinês, esses governos arregimentaram novos membros, como a Venezuela e a ainda aspirante Bolívia, deram consistência a instituições como o Parlamento do Mercosul e avançaram em negociações com a União Europeia e outros parceiros.  Se essas e outras realizações refletiram-se, por um lado, em inegável incremento comercial entre os cinco associados, por outro expuseram os limites de uma união entre países de perfil socioeconômico similar – as duas principais economias, Brasil e Argentina, regrediram neste primeiro quarto do século 21 à condição de exportadores de mercadorias de baixo valor agregado, com parques industriais reduzidos a pó. Não é à toa que o epicentro da pandemia de Covid-19 firmou-se entre nós: as diferenças políticas, de resto importantes, entre os governos do bloco não disfarçam as semelhanças de desigualdade, infraestrutura precária e cultura política autoritária que estão no cerne da tragédia sanitária.  Esses mesmos traços ameaçam, por sua vez, minar os poucos avanços obtidos, como no emperramento das negociações com a União Europeia em razão da inconformidade francesa com a degradação ambiental no Brasil (ainda que, nesse caso, as pressões protecionistas do agronegócio do Hexágono cumpra um papel não desprezível).  O Mercosul assemelha-se a um casamento por inércia, no qual os cônjuges, na falta de bons motivos para permanecer unidos, esperam apenas um pretexto razoável para a separação. A história indica que, mais do que o terreno econômico, o mundo da política é mais propenso a produzir esse tipo de faísca. Resta o estranhamento, como nos versos de Jorge Drexler:  No hay muerto que no me duela, No hay un bando ganador, No hay nada más que dolor Y otra vida que se vuela. Luiz Antônio Araújo é jornalista.

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Aos 30 anos de sua idade, o Mercosul é mais do que as placas veiculares em azul, branco e preto e menos do que a soma de seus cinco Estados Partes. A contabilidade não se explica apenas pelo fato de a Venezuela, mais novo integrante do bloco, ter sido também o primeiro a ter direitos e obrigações suspensos por transgredir o segundo parágrafo do artigo 5º do Protocolo de Ushuaia, a chamada “cláusula democrática” do mercado comum.  Concebido como uma união comercial e aduaneira no início do pós-Guerra Fria, quando a ideia de uma “nova ordem mundial” proposta pelo presidente americano George H. W. Bush era interpretada em certos círculos em termos de uma comunidade global sem muros nem desacertos, o clube do Cone Sul ganhou musculatura institucional no início do século. Foi quando o fracasso evidente de 15 anos de receitas neoliberais fez eleitores da região inclinar-se à esquerda e consagrar nas urnas alguns dos principais críticos da política anterior, como Lula no Brasil, Kirchner na Argentina e Mujica no Uruguai. Turbinados pelo boom das commodities consumidas com avidez pelo emergente mercado chinês, esses governos arregimentaram novos membros, como a Venezuela e a ainda aspirante Bolívia, deram consistência a instituições como o Parlamento do Mercosul e avançaram em negociações com a União Europeia e outros parceiros.  Se essas e outras realizações refletiram-se, por um lado, em inegável incremento comercial entre os cinco associados, por outro expuseram os limites de uma união entre países de perfil socioeconômico similar – as duas principais economias, Brasil e Argentina, regrediram neste primeiro quarto do século 21 à condição de exportadores de mercadorias de baixo valor agregado, com parques industriais reduzidos a pó. Não é à toa que o epicentro da pandemia de Covid-19 firmou-se entre nós: as diferenças políticas, de resto importantes, entre os governos do bloco não disfarçam as semelhanças de desigualdade, infraestrutura precária e cultura política autoritária que estão no cerne da tragédia sanitária.  Esses mesmos traços ameaçam, por sua vez, minar os poucos avanços obtidos, como no emperramento das negociações com a União Europeia em razão da inconformidade francesa com a degradação ambiental no Brasil (ainda que, nesse caso, as pressões protecionistas do agronegócio do Hexágono cumpra um papel não desprezível).  O Mercosul assemelha-se a um casamento por inércia, no qual os cônjuges, na falta de bons motivos para permanecer unidos, esperam apenas um pretexto razoável para a separação. A história indica que, mais do que o terreno econômico, o mundo da política é mais propenso a produzir esse tipo de faísca. Resta o estranhamento, como nos versos de Jorge Drexler:  No hay muerto que no me duela, No hay un bando ganador, No hay nada más que dolor Y otra vida que se vuela. Luiz Antônio Araújo é jornalista.

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