Ensaio

Meu mundo: o Marta

Change Size Text
Meu mundo: o Marta Ilustração de Rafael Sica

Este é um texto misto de vontade de registro e de ensaio, sobre minha conexão criativa com o gênio desenhista Rafael Sica – ano passado, lançamos uma graphic novel intitulada Meu Mundo Versus Marta (São Paulo: Companhia das Letras, 2021) – e o sentido ético da história que contamos, uma história que escrevi, na forma de argumento, não de roteiro, especialmente para ele desenhar. 

Confesso estar impactado pelas análises e comentários a respeito do conflito Estados Unidos, OTAN, Ucrânia, Rússia e China que monopolizou a atenção do mundo do final do mês de fevereiro deste crucial 2022 e segue até o momento. Vivemos em um mundo de guerras e o títere fundamental é sempre o mesmo.

Parece não haver qualquer dúvida sobre a capacidade que a ficção, escrita, desenhada, filmada, encenada em palco ou nas ruas, tem de antecipar o que, em perspectiva histórica, poderia ser categorizado como uma realidade distópica. As caravelas pela primeira vez surgindo no horizonte, da perspectiva de quem já ocupava a América, e o holocausto que se iniciou com as invasões europeias e nunca mais terminou, as bombas atômicas (último esboço realmente sério do que poderia ser uma guerra nuclear) caindo sobre Hiroshima e Nagasaki, e por aí vamos, são demonstração inequívoca dessa perspectiva, dessa potencialidade.

Escrevi a história especialmente para o Rafael Sica muito mais por questões estéticas (sou fascinado pela linguagem dele como quadrinista, como sou pelas de outras e outros do sul do país, como é o caso do, não menos genial, Fabio Zimbres) do que por razões éticas, por algum engajamento ético que estivesse me atormentando lá naquele ano de 2011 (o ano em que parei uns dias para organizar a história no papel, o ano em que, para muitos, tudo andava bem no Brasil). Mas não posso deixar de salientar que a história tem, sim, endereço e tem destinatárias e destinatários.

Há muito aprendi: uma boa história não precisa ser didática ou temer o hermetismo. Ainda orangotangos, meu primeiro livro de prosa, não teria sido escrito se eu tivesse preocupações relevantes em relação à clareza, ao didatismo, do que está sendo contado. Meu mundo versus Marta segue essa linha e dobra a aposta; não vejo como a narrativa possa acontecer sem a criatividade de quem está lendo, se a criatividade de quem está lendo não for adicionada, de modo visceral, à leitura. Não é uma história fechada, dirigida, explicada – é um referencial de reflexão.

Deixadas de lado as interpretações que detectaram na história uma narrativa apologética de pedofilia ou de incesto (foram raríssimas essas leituras, tem um breve roteiro na contracapa que afasta esse tipo de conclusão, a editora não poderia ter sido mais explícita do que foi, e mesmo assim elas aconteceram) e sem abusar do fato, quase óbvio, de que o desenho do Rafael conforma uma obra de arte que se justificaria por si só, independentemente do que, porventura, esteja sendo contado, como algo notável, notável no plano estético, notável no plano da arte, eu queria falar da moralidade fascista que serve de cenário para a relação entre a personagem Marta, de origem não revelada, e a personagem bio-robô que, juntas em uma convivência cíclica, ocupam o centro da fábula (o uso do termo não é gratuito).

O governo fascista e a moralidade fascista permanecem mesmo quando um ser invasor com capacidade de destruição ilimitada ocupa a rotina do planeta – espalhando um medo que, em tese, justificaria, na linha do argumento da inigualável graphic novel Watchmen, do Alan Moore, uma união sólida e fraterna entre as diversas coletividades políticas dissonantes do planeta. Não, Meu mundo versus Marta não é uma resposta cabeçuda à graphic novel do Alan Moore.

Ocorre que, na ambiência violenta da nossa história em quadrinhos, tem uma premissa: a moralidade e a violência protofascista, fascistoide, como se queira chamar, está sempre disponível a oferecer uma resposta de ordem (o argumento da manutenção de uma determinada ordem, determinada estabilidade, é do que se trata), mesmo em uma situação caótica e absurda em que a humanidade esteja condenada a conviver com uma presença apocalíptica, corporificada, individualizada, capaz de extinguir a humanidade em um piscar de olhos.

Quando Albert Camus escreveu o romance A peste, partiu da premissa: a tentação do fascismo sempre retorna. Mesmo em momentos e circunstâncias em que atalhos como os que a lógica fascista propõe seriam absolutamente descabidos, a solução rápida e brutal sempre prometida pelos fascistas retorna. (A lógica fascista sobressai em vários pequenos momentos e detalhes desse conflito protagonizado pela OTAN na Ucrânia.) 

Imaginei um modo novo (como se isso fosse possível) de abordar a expressão do fascismo – uma distopia, e distopias sempre dependem das opções estéticas selecionadas e relacionadas no processo de contar –, um modo que agregasse um relacionamento, mais do que inusitado, improvável. Não vou avançar na direção do explicar a história, quero apenas enfatizar que, nesse plano, o que é mesmo incontornável é um jogo, muitas vezes nada racional, de ação e reação, algo que sempre pode colocar por terra todos os esforços, todos os diálogos, todas as conquistas voltadas à concretização de alguma felicidade geral, indistinta – como não lembrar do longa-metragem alegórico Salò ou os 120 dias de Sodoma, de Pier Paolo Pasolini.

Na graphic novel (falo com base no distanciamento que me chega depois de um ano do seu lançamento), Marta parece esboçar uma ética que o governo geral (personagem onipresente na história) é incapaz de alcançar. A estética, determinada estética (porque eles, os fascistas, sempre tratam de impor a sua própria), tão poderosa nos desenhos de Rafael Sica, é a resposta mais temida dos fascistas. Para quem souber enxergar, na arquitetura da narrativa e de uma determinada arte está um espelho incontornável do que a tal normalidade, a tal ordem ou promessa de ordem, sectária, sempre arriscada pelo fascismo (ou, mais propriamente, pela lógica fascista ou protofascista) – o que se constitui sobre o entendimento de que a solução está, invariavelmente, na eliminação do outro (veja o que acontece, historicamente, repito, no Brasil, em relação às comunidades indígenas, que são, sim, invariavelmente, tratadas como menos do que humanas, sub-humanas).

Rafael tem a caminhada dele, e eu tenho a minha. Penso que nossas intenções na feitura dessa história em quadrinhos são distintas, mas o afeto, a consciência de que essa expressão tão aguda, mesmo que, para algumas pessoas, hermética, contra o fascismo não teria se singularizado, ou até mesmo ocorrido, sem esse nosso encontro, sem as nossas inquietações. A concisão de encadeamento rizomático sugerida no fato de a história abarcar apenas o que acontece em um dia numa cadeia de muitos e muitos dias expressa a impossibilidade de receita; a instabilidade é a estabilidade do dia (e que mentalidade e intenções saberiam lidar melhor com esse caos?). Vivemos em uma grande planície (a revolução tecnologia é isso) e todos os oásis são miragens e todas as respostas evaporam nesse calor. 

O convívio com Rafael foi resposta temporária a muitos dos meus questionamentos – o fato de a história levar dez anos para ser posta no papel e ser publicada confirma ainda mais o projeto de apresentar uma referência estética de inquietude. São muitas histórias em uma só; muitas leitoras e leitores. Não se trata de profecia – essa é uma tecla antiga da ficção – trata-se, sim, de espelhar esse impulso de morte que está no ethos de todos nós. 

Este ano será um ano histórico, nos rumos sociopolíticos do Brasil, nos rumos do mundo, nada será igual daqui para frente. A lógica fascista (que se encobre também em uma determinada proposta de arte, imposição de arte) se deixou escancarar de maneira inédita. Nada está garantido. A arte, em alguns momentos tão orbital, quase nada pode, mas sinaliza. 


Paulo Scott – Escritor, autor, entre outros, dos romances Habitante irreal Marrom e amarelo.

ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.