Ensaio

Nelson Rodrigues e “Os sete gatinhos”: o maior dramaturgo é também o pesquisador mais consistente da boçalidade nacional (Parte 1)

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Nelson Rodrigues e “Os sete gatinhos”: o maior dramaturgo é também o pesquisador mais consistente da boçalidade nacional (Parte 1) Nelson Rodrigues (Foto: Carlos Moskovics, 1949)
Já não era espiritismo, nem outra religião nova; era a mais velha de todas, fundada por Adão e Eva, à qual chama, se queres, paternalismo. Rezavam sem palavras, persignavam-se sem dedos, uma espécie de cerimônia quieta e muda, que abrangia o passado e o futuro. Qual deles era o padre, qual o sacristão, não sei, nem é preciso. (Machado de Assis) Nelson Rodrigues desde os anos 50 já reivindicava para si a disposição para o teatro desagradável, mas aqui o que proponho é examinar o teatro rodrigueano enquanto pesquisa e elaboração estética do abuso moral e sexual brasileiro, cuja ênfase incide nos dilemas eróticos de ciúme e punição, mas nem sempre. Do ponto de vista histórico, é possível avaliar o autor muito prestigiado como o mais certeiro colecionador de barbaridades brasileiras do pós-guerra. Enquanto o país embarcava em um surto de modernização ao som de sambas ufanistas ou de harmonias bossa-novistas, Nelson Rodrigues apostava em uma coleção de ressentimentos e punições a evocar boleros e samba-canção, com um resultado estético muito consistente, entre o cômico e o patético.  O período democrático e razoavelmente otimista do surto nacional-desenvolvimentista tem um contraponto, um tanto histriônico, na estagnação fetichista e na cordialidade familiar sufocante e abjeta. Contra os feitos arquitetônicos e literários de vanguarda (plano-piloto de Brasília e a poesia concreta, por exemplo), Nelson explora o arbítrio cordial, as guinadas psicológicas e eróticas e a submissão sinuosa e interesseira, de preferência no âmbito carioca e suburbano, a célebre zona norte do Rio de Janeiro, cuja mitologia ele tratou de cultivar. Enfim, há nas peças um inventário robusto que parece oscilar entre a manchete de jornal sensacionalista, a piada preconceituosa e a figura mitológica degradante. Já nos títulos de algumas peças se evidencia o procedimento, de preferência com toques misóginos: Viúva, porém honesta, Bonitinha mas ordinária e Toda nudez será castigada. São frases feitas, com pretensão ao lugar-comum, em que machismo e conservadorismo rancoroso se encontram meio por acaso, com inocência boçal que não parece conhecer vexame, uma espécie de sombria sabedoria (?) popular fetichista. Sem muito esforço é possível transformar em manchete sensacionalista o que ocupará o palco. Patriarca feroz deflora meninas, ameaça atacar a própria filha e é executado pela própria esposa é Álbum de família. Médico negro permite que os bebês mestiços sejam afogados por sua esposa branca é Anjo negro. Zulmira queria enterro de luxo, trai marido com milionário, mas o marido faz enterro pobre, é A falecida. Pai de família obriga as filhas a se prostituir para pagar enxoval da virgem caçula é Os sete gatinhos.  Só estas sinopses ultra-esquemáticas já apontam um inventário de abusos patriarcais que oscilam com audácia entre registro cru, piada rebaixada e paixão altissonante. Talvez uma fórmula que mistura chanchada e pretensão trágica, levando o que seria o melodrama esperável para uma ambiciosa liga de humor e sordidez onde o vale-tudo moral deixa os personagens ensanguentados e/ou em transe no desfecho das peças. Mas cabe ressaltar a experimentação formal do autor, que dá testemunho da […]

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