Ensaio

O que faz um escritor?

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O que faz um escritor? O escritor Rafael Gallo no prêmio Jose Saramago 2022 (Foto: Neusa Ayres)

Essa é uma pergunta com dois sentidos, via de regra há sempre mais de um sentido nas cousas. Isso explica ou justifica ser a comunicação um mistério. Ela precisa mais do que palavras e de uma gramática comum, ela precisa de um certo paladar, de gostos e sabores invadindo a língua e a pele. Precisa de café, vinho, música, silêncios, precisa de discussões incômodas e risadas, desconfortos e acolhimento e repetição, muita repetição, e de experiências compartilhadas. Aí, talvez, apenas talvez, em algum ponto perdido nesse emaranhado de sensações haja alguma convergência de percepções e laços se formem. Fora disso creio apenas inventarmos a realidade, o que torna, todo mundo em alguma medida, um escritor-roteirista da própria vida. 

Perguntar o que faz um escritor também é querer saber seus hábitos, o que come, como se veste, como vive. Eu acho sempre mais reveladoras as entrelinhas do que as biografias chapa branca de Wikipedia e os intermináveis elogios de uma horda de fãs.  

O que faz um escritor também é sobre o que o torna ator na sua arte. Essa, de costurar imagens-palavras e criar sentidos e mundos ou, apenas, tentar dar conta de si mesmo.

Annie Ernaux, Nobel de literatura de 2022, disse ao final do seu livro O acontecimento que as coisas acontecem com ela para ela as contar. E que o verdadeiro objetivo da sua vida é que o seu corpo, suas sensações e seus pensamentos se tornem escrita.

“Isto é algo inteligível e geral, minha experiência completamente dissolvida na cabeça e na vida dos outros”. 

Quando li isso, imaginei qual seria o seu chá preferido e o que o ela gosta de comer quando senta em alguma cafeteria nos arredores de sua casa na França. A fala de Annie também me levou, para além do chá, ao termo “escrevivências” de Conceição Evaristo. Tão distantes, tão próximas as duas.

Alguns escritores se definem fingidores, eu gosto também da ideia de serem gatunos, de furtar mesmo, frases e histórias dos outros e de si próprios e reinventar tudo, mentir, portanto, consciente ou inconscientemente.

Conversando com Rafael Gallo, último prêmio Saramago, foi interessante perceber o quanto há este corpo que oferta estórias. O seu manuscrito premiado, agora livro Dor fantasma, já disponível no Brasil, tem algo da suas próprias sensações e dores. Ele sabe disso e fala. O escritor, antes com sonhos de músico profissional, teve que fazer escolhas e se tornou servidor público. Nesse ato de amputar um desejo lhe nasce um livro. Um texto negado por diversas editoras, mesmo sendo ele autor de Rebentar, de 2015, romance vencedor do Prêmio São Paulo, e de Réveillon e outros dias, de 2012, livro de contos vencedor do Prêmio Sesc. Parece não bastar ter prêmios para se tornar um escritor ou um artista seja onde for, tampouco para ser publicado. A mim Gallo encantou ao fazer reverência a seus afetos, trazendo as importâncias que lhe acompanham nos seus processos, como a namorada e a música. Cantou e tocou improvisado na live que fizemos juntos, aceita por ele logo após o prêmio, num gesto muito gentil. 

Gallo foi premiado na edição que trouxe mudanças ao prêmio Saramago. Ao trocar emails com alguns responsáveis pelo prêmio (e aqui um agradecimento a atenção de Guilhermina Gomes, Presidente do Júri na edição de Gallo, e a ponte feita por Rui Coceiro), para entender a mudança de critérios, foi interessante perceber a coerência em aumentar a idade-limite fazendo jus à própria historia de Saramago, um escritor que começou a publicar tarde, sem financiamento para escrever, e cuja obra foi reconhecida depois dos 40 anos do autor.

Outra mudança importante foi o anonimato. Até então, premiavam livros já publicados. Talvez a escolha atual seja uma forma de garantir uma leitura mais isenta, tal qual a Iustitutia, a deusa romana da justiça, com seus olhos vendados. Digo isso porque Diké, a grega, os arregala com sua espada em punho. Mas sobre isso falaremos outro dia. 

No contexto de entender mais do prêmio Saramago, admito que ainda me perturba um questionamento: no mundo dos prêmios, se as bancas são majoritariamente de homens, não são elas mesmas os olhos de alguém? Fica a provocação. Será que haverá diferença nos próximos anos? Dos 12 prêmios Saramago até hoje concedidos, apenas dois foram para mulheres, ambas brasileiras, Adriana Lisboa, 2003, com Sinfonia em Branco, e Andrea Del Fuego, 2011, com o romance Os Malaquias. Das 20 edições de outro prêmio importante, o Oceanos, há apenas quatro primeiros lugares mulheres. 

Pensando nesta justiça de olhos vendados e no quanto as diferenças de gênero (e as outras tantas) colaboram para o quadro de formação de escritoras e da literatura, e o quanto a maternidade e exigências sociais e realidades diversas fazem as mulheres escreverem mais tarde, menos ou numa temporalidade singular, ou o quanto apenas algumas conseguem este feito, repito a pergunta: não seriam as bancas elas mesmas o gosto e os olhos de alguém? O anonimato basta sem um júri diversos (inclusive nas editoras)? Não há aí um paladar especifico, excelente sem sombra de dúvidas, mas específico? Levando, quase naturalmente, às editoras a publicarem mais homens e mais brancos…

O fato é que os prêmios podem ampliar os temperos, criando novos paradigmas ou requentá-los. Ser premiado no exterior fez com que Itamar Vieira Jr. fosse visto no Brasil. Premiar como livro do ano, na 64a edição do Jabuti, o Também guardamos pedras aqui, de Luiza Romão, poeta negra, não fez a escritora, mas talvez ponha pimenta na literatura brasileira.

Ainda na pauta Saramago, quase dois anos atrás, conheci mais de perto o trabalho de outro premiado, o angolano Ondjaki, cuja doçura é percebida nos seus textos, na maioria deles. Diferente de outros escritores, Ondjaki coleciona fazeres para além da escrita, o que o torna muitos personagens – já escrevi sobre isso aqui. Penso no quanto foi necessário ele criar estratégias de cuidado para dar conta da dinâmica na qual se insere, a fim de poder ser ele mesmo, exatamente por ocupar muitos lugares. Como sobreviver e garantir um sobre viver sem se emaranhar nas próprias criações e demandas do mundo? 

O que faz o escritor senão suas escolhas com ganhos e perdas? 

Voltando para Annie Ernaux, na esteira das perdas e ganhos, na Feira de Paraty do ano passado ela disse algo que me foi cortante: falou temer o prêmio. Temia que o Nobel a tirasse da escrita, lhe tirasse o tempo, afinal ela estava numa época da vida que precisava ser vivida na sua total intensidade porque não haveria momento de ser lembrada. Diferente da infância ou da juventude ou dos quarentas anos, não haverá tempo para se lembrar da velhice vivida. Essa percepção retumba em mim, me emociona e me convoca a algo que nem eu mesma sei o que é, mas me cria angústias e movimento. Creio que os escritores de fato são esses que nos invadem de uma forma a nos tornar outras pessoas, ou nós mesmos. 

Yara Monteiro, outra escritora angolana, com quem já tomei café e vinho e assisti um lindo show de jazz, diz: “minha alma respira pela ponta dos meus dedos”. Gostei quando ela honestamente disse: “acho que tenho alguma coisa importante a dizer… devo ter um ego gigante porque devo-me crer comparar ao criador, à natureza e daqui a minha necessidade em criar mundos e personagens”. Criar. O ato humano por excelencia. 

Mas no quesito honestidade e humor, o poeta moçambicano Guita Jr., que está a lançar o livro Chão e outras arritmias, pela Editora Kacimbo, de Angola, foi mais cortante na sua ironia sofisticada: 

– Eu escrevo para me aparecer. Não vivo sem likes; há quem precise de insulina, quimioterapia, muletas, oxigênio ou comida. Eu sufoco sem likes!

  • Sério?  Fala serio, seu besta, senão eu publico isso – eu lhe disse.
  • Juro. Aqui no meu “juro” podes por um coraçãozinho.
  • (Pausa)
  • Tou a brincar. Apenas não sei por que escrevo. Não mesmo. Às vezes tenho a necessidade de dizer coisas. 
  • Tarde demais, já coloquei a primeira resposta.

Não preciso dizer que tenho um carinho especial pelo Guita. O “não saber” é a resposta verdadeira, até porque o insta dele é privado. 

Mas “faço isso para me aparecer” serve para pensar algo importante. Não seria este aparecer e escrever uma forma para ser? O sintoma de tentar descobrir-se pelo olhar do outro? Apesar do sentido pejorativo que palavras como narcisismo e ego carregam, pergunto se é possível fazer algo sem um ego capaz de sustentar nossas ações, mesmo sendo o ego apenas uma pequena parte do que somos e algo que mais parece um lego capaz (e necessário) de quebrar e se reconstruir a todo tempo.  

“É na natureza do lego se desfazer…”, essa é minha resposta padrão às lágrimas da minha filha quando sua obra rompe. Romper e refazer parece algo comum ao lego e ao ego…

Antes de falar de João Mello, outro autor angolano, vou explicar rápido por que Angola está tão presente neste texto e na minha vida, só para não ficar estranho citar três autores de lá. 

Era 2000 e eu conheci o Joca, um artista angolano que mora perto de Florianópolis, na cidade portuária de Itajaí. Ele me contou, em detalhes, a fuga da família da guerra civil de lá, era 1971, ele um menino. Fiquei fascinada. O Brasil novamente rota de Angola. Nossas histórias são imbricadas. Naquele ano comecei a escrever algo inspirada no Joca e a buscar escritores angolanos. Li com mais atenção Agualusa, Ana Paula Tavares, Ondjaki, conheci Yara e João Mello, Pepetela, e a admiração cresceu pela literatura angolana. O meu texto, que tem Angola, Brasil e Europa como pano de fundo, ainda está amadurecendo, talvez me esperando para que algo em mim nasça para ser finalizado. O tempo dirá. 

Por que conto isso? Porque ao fim e ao cabo tudo é afeto. Inclusive a eleição dos autores que cito aqui. A deusa da justiça, afinal, não é tão imparcial assim, estamos sempre a ver algo ou elegendo o que ver. Alguns destacam as farpas da madeira, outros o que a madeira pode se tornar. É só tocando a madeira, lixando e polindo, que as farpas desaparecem. Voltamos ao escritor-roteirista da própria vida. A forma como elegemos ver o mundo é a forma como mundo se revela para nós. Talvez as histórias sejam, na verdade, grandes estórias. 

João Melo, jornalista e escritor que já morou no Brasil, outro angolano que hoje vive entre Portugal e os Estados Unidos, me disse que escreve “para viver (ou, se quisermos, sobreviver)”. “Mas, sobretudo, escrevo para interagir com os meus contemporâneos, a começar pelos meus compatriotas, mas não só, é tomar posição perante as coisas do mundo e do tempo em que vivo. Para mim, a literatura é uma grande conversa…”.

“…uma grande conversa…”: o leitor também cria o texto quando lhe dá sentido. A beleza da palavra tem disso, ela informa, mas pouco diz. 

Talvez o que faz um escritor não seja um ego gigante, mas exatamente seu oposto, um vazio e a busca por construir sua própria história, algo ainda mais desafiador quando quem escreve é alguém que sente o mundo de forma abissal, que veste uma pele sensível e permeável. Talvez um escritor esteja a buscar sua voz e um personagem para si ou uma ancoragem através da palavra. Talvez, apenas talvez.


Samantha Buglione – Psicanalista membro da Fórum do campo lacaniano Brasil, escritora, doutora em ciências humanas. www.samanthabuglione.com.br e @samanthabuglione

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