Ensaio

O teto sobre nós não é rooftop

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O teto sobre nós não é rooftop

20 de novembro de 2006, dia em que finalmente o imóvel localizado na Rua Caldas Júnior, esquina com a Avenida Mauá, iria ao encontro da função pela qual fora originalmente destinado, MORADIA POPULAR NO CENTRO. 

Mas voltemos a alguns antecedentes, pois a edificação de oito andares, traços arquitetônicos protomodernos, esquina chanfrada, coroamento discreto e vista para o Guaíba carrega uma história bastante atribulada.  Construída durante a ditadura militar com recursos públicos do Banco Nacional de Habitação tinha por princípio designar-se a fins de moradia social. No entanto, infelizmente não foi o que ocorreu e em seguida o imóvel foi repassado à Caixa Econômica Federal, que abrigou seus respectivos escritórios por um determinado período enquanto uma de suas sedes estava em obras. O esvaziamento da edificação fez com que a Caixa Econômica Federal colocasse o imóvel público imediatamente à venda. 

Foi em meados dos anos 2000 que o imóvel até então de propriedade pública foi repassado para iniciativa privada a preço de banana. A nova proprietária, uma família de joalheiros ligada a uma iniciativa de empreendimentos imobiliários, manteve a situação ociosa da edificação aliada aos seus interesses exclusivamente especulativos. Ou seja, um contrassenso ao que rege a nossa constituição federal que exige a garantia da função social da propriedade*.  Qualquer imóvel, seja ele público ou privado, tem por obrigação legal destinar-se a alguma finalidade de uso por um motivo bastante simples, este por sua vez está diretamente integrado a uma rede de infraestrutura pública. As questões relativas aos impactos urbanos precisam ser tratadas sempre a partir de uma ótica coletiva, afinal, a cidade é um direito de todos e todas, ou pelo menos deveria ser. 

Mas parece ironia do destino, que aquilo que foi concebido para fins de moradia social (a partir de dinheiro público, não podemos esquecer) encontrava-se em situação de abandono. Portanto, ao deparar-se com aquela famigerada expressão ‘’tanta gente sem casa e tanta casa sem gente’’, lembre-se deste caso, pois é exatamente sobre isto. 

Bom, mas continuando a história. É nesse contexto de total abandono que no ano de 2006 o edifício vira notícia nacional. 

O fato foi que a Polícia Federal descobriu que sob aquela edificação, uma das maiores facções criminosas do país cavara um túnel de 80 metros cuja intenção estava bastante clara: atravessar a Caldas Júnior, passar por baixo da Siqueira Campos até chegar à sede do Banco do Estado do Rio Grande do Sul, e claro, limpar os cofres públicos. 

Há boatos de que o próprio proprietário havia negociado o imóvel com “um laranja’’ ligado a tal organização criminosa pelo dobro do preço que supostamente pagara. Entretanto não existem comprovações cartoriais de tal feito, a matrícula do imóvel ainda estava oficialmente ligada à Caixa Econômica Federal. 

Entre lacunas cartoriais, negociações obscuras, crime organizado e descumprimentos constitucionais, o prédio localizado em uma das áreas mais abundantes de oferta de infraestrutura da cidade permanecia vazio e a serviço da especulação imobiliária. 

Moradia Popular, finalmente! 

Finalmente chegamos novamente ao ponto de partida desta história. Foi no dia 20 de novembro de 2006, onde um grupo de famílias necessitadas por um teto e articuladas ao Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) devolvera o cumprimento da função social daquele imóvel. A Ocupação 20 de Novembro, como era chamada naquele momento, tornou-se um dos principais símbolos da luta pela Reforma Urbana na nossa cidade. A bandeira levantada é clara: o direito à moradia não pode estar desarticulado ao direito à cidade, o que explica bastante a ocupação ter ocorrido em uma área central e bem ofertada de equipamentos públicos, mobilidade, trabalho e lazer. 

Aquele vazio urbano, aos poucos dava espaço não só a uma nova perspectiva de lar para aquelas famílias, mas também a um modelo de futuro mais justo para nossa cidade. 

Aquela fachada de traços arquitetônicos protomodernos naquele momento começara um diálogo direto com a cidade através do engajamento daquelas pessoas que recuperavam o sentido de existência daquele imóvel junto com a sua dignidade de pertencer a um lugar. 

O despejo! 

Porém, este processo foi brutalmente interrompido no dia 23 de março de 2007, através de uma ordem de despejo marcada por violação de direitos humanos e agressão policial. O grupo formado por famílias, constituídas, sobretudo por mulheres e crianças, foi obrigado a deixar o imóvel, que naquele momento já era chamado de lar. 

A partir de então o prédio voltou a sua condição de abandono e descumprimento de função social. Já as famílias foram obrigadas a buscar alternativas de moradia e de condição de sobrevivência. O grupo, que já estava organizado em uma estrutura de cooperativa de trabalho e habitação, migrou para um imóvel público municipal ao lado do estádio Beira-Rio, dando continuidade as atividades de geração de renda e busca por moradia digna. 

A retomada. O centro é do povo! 

Entre anos de despejos, ocupação, luta e sonho, a Cooperativa retorna ao edifício da Caldas Júnior, que (claro!) ainda permanecia em situação de abandono. 

Foi no ano de 2013, que o prédio passa a ser ocupado novamente, e desta vez levando o nome de Ocupação Saraí, uma homenagem à ex-vereadora Sonia Saraí da Lima Soares que falecera naquele mesmo ano. 

O espaço voltava a ganhar vida através de muito trabalho daquelas pessoas não só necessitavam por um lar, mas também engajadas na luta por uma cidade mais justa e solidária. As negociações para garantia da permanência das famílias foram retomadas contando com uma rede de apoio de profissionais das áreas de engenharia, arquitetura e direito. 

Os diálogos com as organizações do estado pareciam estar se encaminhando para um reconhecimento efetivo de moradia popular naquele espaço. A proposta elaborada pela equipe técnica junto com a cooperativa agregava um programa de necessidades bastante amplo contemplando moradia, espaços comerciais e institucionais, e que inclusive poderiam ser realocados e revertidos para a administração estadual. Ou seja, além de um estudo de viabilidade técnica, estava sendo apresentada uma proposta de viabilidade econômica. 

Muito embora o proprietário negasse qualquer tipo de proposta de compra e venda, o governo do estado movimentava-se para um processo de retomada do imóvel e reconhecimento para fins de moradia. Eis que em 4 de julho de 2014, o imóvel foi declarado como bem de interesse social pelo governo estadual. O que parecia ser uma batalha ganha, em seguida mudou de rumo. O novo governo do estado que assumira em 2015, aparentemente nem um pouco comprometido com as pautas relacionadas ao direito a moradia e ao direito a cidade cessou o processo de reconhecimento do imóvel. 

A tentativa de negociação arrastou-se por mais alguns anos, mas sem perspectiva de permanência, as famílias acabaram aos poucos buscando por outras alternativas de moradia, algumas ainda articuladas ao MNLM e a Cooperativa 20 de Novembro, já outras não.  

Esta história marcada por tantas ironias do destino, que nos fazem inclusive perder a ternura, também guarda lembranças carinhosas e de esperança. A rua ocupada por festividades trazia uma belíssima e efervescente integração de diversidade cultural. A experiência do topo da cobertura, através de uma visual de 360 graus reforçava o sentido de responsabilidade cidadã entre aqueles que ali compartilhavam ideias e sonhos. O interior daquele espaço era imbuído de uma visão de integração social e garantias de direitos através da cidade. Mesmo aos que não moravam ali, que era meu caso, compartilhavam de um senso de pertencimento a aquela utopia. O teto de fato era sobre nós. E naquele lugar todos fomos Saraí. 

Sem mais, fecho este capítulo aos pedaços, mas com a certeza de que o centro é do povo. 

*Nota: Atualmente a edificação que por muitos anos foi símbolo da luta por moradia digna e direito à cidade receberá o glamoroso empreendimento imobiliário ‘‘Cais Rooftop’’ anunciado recentemente pela Prefeitura de Porto Alegre, sendo o primeiro projeto a enquadrar-se na nova legislação que institui o Plano de Reabilitação do Centro Histórico aprovado mesmo com a suspensão da revisão do Plano Diretor determinada pelo Ministério Público.  O curioso, é que o a Lei Federal do Estatuto da Cidade determina que a alteração de diretrizes urbanas só podem ocorrer mediante a alteração no Plano Diretor, que  no caso estava suspensa exatamente pela limitação da participação popular em função do contexto de pandemia. Clique aqui para ler a matéria.


Taiane Beduschi é arquiteta, urbanista, cofundadora da @arquiteturahumana e ilustra histórias.

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