Ensaio

Perceba, proteja, preserve

Change Size Text
Perceba, proteja, preserve

A arquitetura sempre foi um sonho na minha vida. Sonho que não realizei da forma tradicional, ou seja, cursar a graduação e abrir meu próprio escritório, ou então fazer um mestrado, doutorado, e quem sabe me tornar um acadêmico ou pesquisador na área. Não foi esse o caminho que escolhi. Acabei seguindo o caminho das artes visuais, mais especificamente a fotografia, e me tornei bacharel pelo Instituto de Artes da UFRGS. Desde o tempo em que sonhei em ser arquiteto já se passaram quarenta anos. Tempo que vivo em Porto Alegre, em que cheguei à conclusão de que não nasci pra fazer apenas uma coisa. Preciso de todas as formas para expressar o que sinto, e tenho feito isso através de desenho, pintura, gravura, adesivos, fotografia, intervenções urbanas, bordados e até mesmo através da escrita. Preciso me comunicar.

As três palavras que abrem esse texto-conversa-depoimento-confissão fazem parte de um projeto que criei em 2016, chamado Leve a minha Cidade – Perceba | Proteja | Preserve. Não é necessário dizer que ele nasceu a partir daquele sonho que eu tinha: a arquitetura. Surgiu também depois de perceber – e talvez aqui esteja o motivo de usar esta palavra – que eu tinha muitos desenhos sobre Porto Alegre, utilizados em outros projetos. O ato de desenhar era também uma forma de homenagear a cidade que eu havia escolhido para viver. 

Foi em Porto Alegre que me descobri artista, melhor dizendo, foi aqui que percebi que não saberia fazer outra coisa na vida a não ser criar. A arquitetura sempre foi algo que relacionei ao patrimônio, e, quando me debrucei sobre o Leve a minha Cidade com mais atenção, entendi que os desenhos poderiam servir como um chamado ao público, para que protegesse e preservasse a sua própria história. Era como um filho muito querido. Meu desejo é que se tornasse um projeto para a vida inteira. Me imaginava aposentado, velhinho, desenhando prédios, esculturas, parques, monumentos. Poderia oferecer ao mundo a minha visão sobre as cidades. Uma visão amorosa.



O projeto ganhou força. Era preciso um jingle. Rabisquei uma letra, que ganhou música composta por meu marido, Robledo Condessa, e gravação em estúdio pela belíssima voz da amiga e cantora Lúcia Severo, com direito a vídeo no YouTube. Era a minha paixão pela arquitetura se manifestando de outra forma. A partir disso, criei e construí uma série de produtos de Porto Alegre, como almofadas, canecas, pôsteres, adesivos e miniaturas em mdf. A cidade merecia mais essa homenagem. Na sequência vieram mais três coleções.

A coleção Expressões daqui trouxe, de forma bem humorada e com visual gráfico inspirado na cultura da pop art, nosso jeito de falar com os respectivos significados. Se reconhecer através da palavra é valorizar de onde viemos. As expressões escolhidas foram: Bah, Bem Capaz, Quedê-le, Tchê, Super, Refri e Churras, Arrecém, Guri e Guria.



A Coleção Pelotas nasceu naturalmente. Era o momento de homenagear a cidade onde vivi até meus 18 anos, e onde, não tenho a menor dúvida, minha paixão pela arquitetura nasceu. Foi lindo retornar à cidade e lançar a coleção com uma exposição no Mercado Central. Era o meu olhar sobre um lugar que até hoje me habita e de onde trago amizades profundas e verdadeiras. Em 2019, a partir da Coleção Pelotas, fui contratado para assinar a identidade visual para a 27ª Fenadoce. O tema Patrimônio Nosso, abordou o tombamento e registro pelo IPHAN de Pelotas como Patrimônio Cultural Brasileiro Material e Imaterial. Os cenários que criei para o Espaço Arte do Doce trouxeram representações iconográficas do Patrimônio Pelotense Material e Imaterial: o Mercado Central, A Biblioteca Pública, o Chafariz das Nereidas, o Theatro Sete de Abril e a cozinha do Museu do Doce. Um grupo de 17 atores realizou apresentações neste espaço valorizando a cultura e tradição de Pelotas, nascida no século XVIII com a implantação das primeiras charqueadas, que possibilitaram a chegada ao Sul do país de uma riqueza nacional: o açúcar, mostrando a peculiar interligação entre os opostos – sal e açúcar, rural e urbano, material e imaterial. Foi épico!! É o mínimo que posso dizer. A arte dialogando com o público através da representação da arquitetura Pelotense.



A quarta coleção lançada em 2018, foi novamente uma homenagem a Porto Alegre, mas, desta vez, focada no Centro Histórico. Além dos desenhos do Mercado Público, Museu Júlio de Castilhos, Chalé da Praça 15, Confeitaria Rocco, Viaduto da Borges e Cinemateca Capitólio, incluí também um ícone da cidade: o barco Cisne Branco. Foi numa noite agradável de verão que aconteceu o lançamento do projeto enquanto navegávamos pelo Guaíba. A capital foi novamente homenageada por mim.



O projeto Leve a minha Cidade recebeu importantes prêmios nacionais de design em duas edições do Prêmio Nacional Bornancini de Design, promovido pela APDesign|RS, e também foi selecionado para participar da 12 Bienal Brasileira do Design Gráfico em Brasília. Desde então sigo desenhando, sempre com o objetivo de valorizar o nosso patrimônio através de um olhar muito pessoal. É fundamental que as pessoas entendam que esse patrimônio é delas também. Os desenhos servem como um ponto de partida para que o público perceba o lugar onde vive, enxergue realmente o que está a sua volta, se interesse pela história, ajude a preservá-la e também denuncie situações de ameaças. A cidade nos pertence.

Retornando às palavras que dão título a esse texto, lembro das cenas horríveis do nosso patrimônio artístico e arquitetônico sendo destruído em Brasília no último dia 8 de janeiro. Pessoas sem o menor respeito com a nossa cultura, com a nossa história. Tudo transmitido ao vivo pela televisão e deixando o país perplexo diante de tanta selvageria. 

Eu conheci Brasília apenas em 2022, e apesar da rápida visita, ratifiquei minha paixão pela arquitetura e o quanto ela pode nos emocionar, nos impactar e nos envaidecer. Senti isso enquanto caminhava calmamente e observava tudo pela Esplanada dos Ministérios até chegar na Praça dos Três Poderes. Tudo é grandioso na capital federal. Ao entrar na Catedral, me surpreendi com os anjos enormes e suspensos, que pareciam voar pelo espaço criado por Niemeyer. Na visita guiada ao Congresso Nacional – com a exigência de usar calça comprida em sinal de respeito – pude ver ao vivo os belos painéis de azulejos assinados por Athos Bulcão e uma pintura gigantesca de Di Cavalcanti que nunca foi assinada pelo artista. Ainda foi possível uma visita ao plenário da Câmara dos Deputados e Senadores. Infelizmente, as visitas ao Palácio do Planalto estavam suspensas desde a pandemia. Enquanto escrevo, retornam aquelas cenas de pura irracionalidade do dia 8.

Os sentimentos vão da perplexidade à indignação ao saber dos danos irreparáveis para a nossa cultura e patrimônio. A resposta que ofereço é novamente com arte, através de nove desenhos e um vídeo que compõem a Coleção Brasília, o meu novo filho do projeto Leve a Minha Cidade. Ao conhecer uma cidade, admirá-la, procurar saber da sua história e vivenciá-la, nem que seja por pouco tempo, nós a possuímos, ela passa a fazer parte da gente, da nossa história também. É algo que carregamos para sempre.

Como disse, lá em 2016 eu pensei que o Leve a Minha Cidade era um projeto para a minha aposentadoria e velhice. A aposentadoria chegou no final de 2022. O velhinho ainda vai demorar um tempo para dar as caras, mas tenho certeza de que ele não vai me deixar na mão e seguiremos construindo esse sonho juntos.

O link para o vídeo é este

Os desenhos de Brasília estarão todos à venda no site novo. O endereço: www.leandroselister.com.br


Leandro Selister (Vacaria, RS, 1965). Atua como artista visual e possui formação em fotografia pelo Instituto de Artes da UFRGS, onde também foi Professor. Já realizou diversos projetos de Intervenção Urbana, exposições individuais e mostras coletivas. Publicou três livros: «Cotidiano, Intervenções na Trensurb em Porto Alegre», «Tique-taque, tremor das pequenas coisas» e «Há tempo atento ao tempo». Criou e editou o site Artewebbrasil (2000/2009). Desde 2016 desenvolve o projeto «Leve a Minha Cidade – Perceba, Proteja, Preserve» com a proposta de estimular a valorização do patrimônio público cultural através do desenho, de objetos de design e estampas. Vive e trabalha em Porto Alegre. Nos últimos anos também dedica-se ao bordado.

RELACIONADAS
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.