Ensaio

Por que não fascismo de cor?

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Por que não fascismo de cor?

O debate entre a perspectiva do racismo estrutural e o fascismo da cor (título do livro de Muniz Sodré) é visitado aqui pelo valor essencial para as reflexões sobre o racismo no Brasil. São cotejadas as duas contribuições, numa abordagem em que se acentuam os contraditórios, sem necessariamente antagonizá-los.

A contribuição de Silvio Almeida

A contribuição forte de Silvio Almeida para os movimentos sociais antirracistas no Brasil é seu livro de divulgação, de uma pedagogia invejável, sobre o conceito de racismo estrutural. Também é positivo que desenvolva uma perspectiva que busca interfaces para a compreensão do racismo no que é estrutura.
Seria Silvio Almeida um seguidor de Althusser? Sim, na medida em que estabelece uma matriz onde há uma interposição entre economia, cultura e política. Mas, em Althusser, essas relações não estão determinadas de forma atemporal por um dos polos. Cada período histórico tem um polo que se sobressai. Já falar em racismo estrutural seria, de certa forma, afirmar que a cultura é o elemento determinante, mesmo que ocorram as interposições da economia e da política. Claro, pode-se argumentar que o momento histórico atual é de emergência da cultura perante a economia e a política. Algo que só o autor poderá esclarecer, pois, em seu livro de referência, há apenas uma citação de Althusser.
A questão das intersecções entre economia, política e cultura tem uma complexidade. Aparentemente, na economia abstrata, como diz a máxima, dinheiro não tem cor; na política, a cor do voto não está impressa. De certa forma, essa rotina da economia e política é suspender as injunções da cultura. Marx já tinha observado isso, ao afirmar que o capitalismo era também a superação das trincheiras e becos da cultura.
Portanto, se na economia e na política há cores diversas, isso está mais derivado das intersecções de uma questão da cultura com a economia e a política, o que nos leva a considerar que sempre há uma forma cultural de fazer economia e fazer política. O capitalismo tenta fazer disso uma grande abstração, ao colocar o mercado como referência de tudo e a democracia como valor universal. Sabemos que, pelas intersecções, isso é meia verdade, pois só uma autorreferencialidade da economia e da política (uma ideologia dos valores universais da democracia e do mercado) pode levar a essa interpretação “ideológica”. Se, em geral, as teorias aceitam as intersecções entre economia e política, sendo a primeira dominante sobre a segunda [?], e a segunda tentativa de regulação da primeira, as interposições da cultura sempre foram denegadas. Essa é a maior contribuição dos estudos culturais, pois nos fazem ver que não há teoria e prática democrática sem considerar a diferenciação da cultura; o mesmo vale para pensar a cor do dinheiro.

Então, a importância do pensamento de Silvio Almeida é nos levar a pensar, como os estudos culturais consagraram, a compreensão de que a cultura é agenciamento primeiro dos processos econômicos e políticos, sem que isso negue as retroações das lógicas do campo econômico e político sobre a cultura, assim como outros agenciamentos e retroações. Essa matriz nos parece produtiva para a compreensão dessas relações, em que não se nega a autonomia de cada uma das esferas e, ao mesmo tempo, se pensam as relações entre elas (cultura, economia e política), em matrizes abissais. Quando se coloca a questão do racismo estrutural, questiona-se então como essa veia se atravessa e circula nos vários campos econômicos e políticos, mesmo que sua fonte seja a cultura ou cultural.
A sua preocupação pretende situar o racismo para além de uma concepção individualista, institucionalista e sugere o estrutural como foco. A literatura é vasta em questionar essa negação do indivíduo nos processos, em particular na crítica ao estruturalismo, incluindo aí os autores que deram continuidade à obra de Bourdieu, que buscaram a reflexão sobre a questão da subjetividade no processo, algo iniciado por Sartre, com sua crítica ao conceito de estrutura do marxismo. Por outro lado, o risco de subestimar o lugar das instituições na constituição do racismo pode levar a uma indiferenciação e, por aí, à não compreensão do que ocorre. Assim, o que é caracterizado como racismo estrutural não é o mesmo em situações institucionais conforme vinculações a lógicas de mercado econômico, mercado político e aquelas voltadas para a cultura (em especial, quando se fala em universidades, hospitais, agências de solidariedade, futebol, etc.). Aqui também a perspectiva matricial pode ser mais produtiva do que a hipótese de que é isso ou aquilo. Assim, estrutura, instituição e indivíduos agenciam e, ao mesmo tempo, se intersecionam, gerando situações específicas a serem compreendidas, conforme o caso de racismo que gere indignação e análise.
Mesmo com estas ponderações, a perspectiva se mostra politicamente produtiva. Teoricamente, também, na medida em que coloca a questão da estrutura como uma chave de compreensão (e aí o conceito traz à cena uma das heranças mais fortes da sociologia para a compreensão do racismo, como dito nas discussões recentes sobre o livro e entrevista de Muniz Sodré).
A fragilidade do livro e debates recentes é a ausência de menção a quase um século de discussões, incluindo as que nascem com o estruturalismo fundado por Saussure, passando por Piaget, Lévi-Strauss, Bourdieu, etc. Uma geração de pensadores que colocaram em questão os limites de Marx, Weber e Durkheim, ou buscaram, nas interfaces teóricas entre eles, novas hipóteses. Para isso, dialogaram com os avanços propiciados pela semiologia, especialmente, mas não só, de Saussure, e com a psicologia, não só trazida pela psicanálise. Signo, linguagem e mito passaram a ser elaborados por abordagens na interface entre a sociologia e a antropologia, incidindo no debate entre as filosofias estruturalistas e existencialistas.
Questões como o mito, a linguagem, o signo, a comunicação e a mídia não são abordadas pelos que defendem o conceito de estrutura colocado pela sociologia fundadora. A geração de estruturalistas referenciados na semiologia de Saussure e na antropologia de Lévi-Strauss viveu uma grande mutação, em especial quando se observa a mutação teórica perante um fato novo, uma nova linguagem midiática – a imagem midiática em movimento de acesso massivo (a televisão), bem mais amplo do que o cinema havia propiciado. A televisão (depois do rádio e do cinema) colocam em xeque as abordagens logocêntricas, pela linguagem e também pelo discurso (não se trata mais do Estado, a partir de 60, mas do consumo, etc.).
Isso demanda novas compreensões, abrindo-se, aí, uma crise do conceito de estrutura – como evidenciam os autores pós-estruturalistas, muitos dos quais foram estruturalistas. Essa transição
epistemológica acentua a crítica ao logocentrismo e às oposições binárias herdadas da semiologia de origem do estruturalismo em sua fase mais contemporânea. E, por este caminho, atualiza o debate sobre linguagem, signo e discurso.
Não se trata, nesse debate, de um capricho epistemológico. Quando se aborda a construção do campo de pesquisa em comunicação e mídia, esse momento foi especialmente rico e central. Este momento é central, pois se diferencia de abordagens socioantropológicas anteriores, construindo questões e hipóteses que evidenciam novas problemáticas para pensar o social no contexto de mudança dos processos de midiatização contemporânea da sociedade (iniciada pelo rádio, no início do século, mas acentuada pela televisão). Por vários aspectos que podem ser ponderados, o Brasil é um dos centros internacionais de reflexão sobre isso. Parece, entretanto, que as ciências sociais clássicas ainda não reconheceram isso na devida medida. Ao não reconhecerem, desconhecem o forte arcabouço teórico do Brasil no mundo, construído em meio século do campo de construção das ciências da comunicação aqui. Um paradoxo para quem critica a dominação cultural.

A contribuição de Sodré

Ao contrário das ponderações críticas, não há, no livro de Sodré, um descarte do conceito de estrutura. Mesmo em uma elaboração diversa da que venho desenvolvendo, está subjacente em sua formulação um “estado da arte” relativo ao longo debate sobre a questão das estruturas. Essencialmente, é impossível elaborar a comunicação, inclusive midiática, a partir do que é estrutura. A comunicação é, no mínimo, interação entre várias estruturas (manifestas em instituições e atores sociais), o que dificulta a redução da questão à sua existência e, reversamente, coloca a questão estrutural como parte das disputas simbólicas manifestas no campo cultural, político e econômico.
Sodré, sem descartar a estrutura, atualiza a discussão inaugurada pela sociologia, recorrendo ao conceito de forma. A forma é lógica, inclui as narrativas, em suas faces paradoxais, e a linguagem. Estrutura e forma concorrem na construção da realidade, mas a forma é que dinamiza o processo, na medida em que é reflexividade social. Portanto, Muniz inverte a problemática da estrutura. Sem negá-la, afirma que são as formas sociais, com suas incidências inclusive sobre as estruturas, que antecedem ao acontecimento racista. A forma ocupa, em sua formulação, o lugar de primeiro, mas já “enriquecido” com elementos relativos à estrutura potencial (em útero) e a realidade herdada. A forma, nesse sentido, é estruturante.
Atuante como reflexividade social, a forma – no caso a forma escravista – está presente inclusive onde os negros não estão diretamente envolvidos. Pode ser o surto do CEO da Hurb, o motorista que atropelou e debocha de um jovem que roubou um celular, a escravidão de argentinos em vinícolas do Sul. Mas o lance decisivo viria quando inclui a forma escravista como uma variação do fascismo. No caso, fascismo da cor.
Este lance de Muniz é especialmente forte. Ao trazer a problemática do racismo como uma variação do fascismo, opera na interface entre epistemologia e política, conectando, numa conjuntura especialmente delicada no Brasil, a resistência afro a questões estratégicas, inclusive quando suspende os discursos da democracia como valor na medida em que situa, no cerne das teorizações republicanas, a questão do racismo da cor. Historicamente, Muniz municia o movimento negro com uma “arma” epistemológica mais potente, pois convoca a uma inserção protagonista nos rumos políticos e econômicos do pais. Resolve-se assim, neste operador, uma
historicidade entre movimento negro e movimentos democráticos de esquerda, nem sempre convergentes, pois, inclusive por decorrência das teorias sociais da luta de classes, a questão negra era contradição secundária, e, por isso mesmo, o movimento não se espelhava necessariamente na esquerda, apesar de ter oferecido, a esta mesma esquerda, muitos de seus quadros engajados de forma muito intensa (veja-se o caso de Marighella).
Ao afirmar que a forma social escravista, uma variação do fascismo, sobrevive às mutações legais, Sodré oferece uma chave para a compreensão da conjuntura atual: de um lado, avanço legal; de outro, a forma que continua a atuar, para além do avanço legal, pois ela tem a sua fonte em processos mentais, na tipificação do outro, como base das materializações em interações. Os casos de racismo – acontecimentos – evidenciam isso de forma diversa, inesperada, pois a tipificação se atualiza conforme experiências mentais especificadas, o que permite falar em imaginários e emocionalidades observadas.
Essa relação escravista, uma variação do fascismo, não é desvinculada. A forma escravista depende, em seu lugar, do senhor e do escravo. Assim como o burguês não é uma categoria abstrata, mas que se realiza numa forma de ser em que objetos e condutas estão incorporadas, a forma escravista carece do “escravo” como o pulmão pede ar. Um escravo imaginário, pois não mais legal. É como se todo negro fosse visto como parte de uma pergunta que se presentifica (De quem é este negro? Ou: Este negro é seu? Como posso usar este negro? Será que ele pode ser meu negro? Etc.). Este escravo imaginário, uma carência presente na cultura. Um duplo vínculo, esquizofrênico e paradoxal, como bem perceberam Bateson e Watzlawick (Escola de Palo Alto).
A inferência sobre as crises interacionais quando o protocolo de aceitação do vínculo esquizofrênico não acontece, na clínica, pode ser ampliada para o social. Sempre que não se comporta como tal, está, potencialmente, na zona de conflito, de risco e ameaças, incluindo de morte (genocídio), mas também, por um degradê, de punições sociais, do desemprego ao isolamento interacional em ambientes dominados por não negros (de cor e/ou de alma). O mesmo se passa, por analogia, com o feminicídio.

E a estrutura, onde fica perante o fascismo da cor?

Uma parte do debate se concentrou na crítica de que a estrutura não se reduz à lei escrita. Sodré não reduz a isso a estrutura. Fala também, em várias passagens, na estrutura enquanto discurso social. Concordo que a estrutura não se reduz a lei e discurso, embora essas materializações da experiência mental da sociedade (leis escritas e discursos) sejam referências importantes, pois lançar o processo de midiatizar o que está na cultura aciona processos de regulação mais potentes (isso vale inclusive quando se fala nas mutações legais e discursos que, sucessivamente, asseguram aos negros lugares sociais de não escravos). A questão de Sodré, aqui, é: então, se a lei e o discurso são outros, por que o racismo é tão intenso e forte? A forma social escravista sobrevive a essas mutações, para além do que está em leis e nos discursos.
A questão estaria resolvida assim, e parece uma boa solução. A crítica se refere às estruturas que não estão em lei e no discurso (portanto, não são visivelmente manifestas em materialidades estruturadas – ou seja, que articulem esquemas e percepções em um conjunto sistemático e logicamente integrado). A solução de Sodré é falar do que não é lógico – nas formas, manifesto em duplo vínculo, paradoxal. Portanto, não se referem a estrutura.
Pode-se, entretanto, ponderar, mesmo em concordância com o conceito de forma escravista, uma variação do fascismo, ponderar que a estrutura contém a forma, ou seja, ao tempo em que
é sistemática, tem, em suas bordas, o que é ilógico, duplo vínculo e paradoxo, não manifesto, necessariamente, em suas materialidades sistemáticas. Isso remete a uma forte discussão no estruturalismo (as estruturas inconscientes ou subconscientes). Estas não seriam tão visíveis assim. São, inclusive, objetos de intepretação – seja discursiva ou legal (quando, por exemplo, se discute que o assassinato de Gustavo Amaral, no Rio Grande do Sul, pode ser caracterizado como racismo ou como “‘legítima defesa imaginária”, tese de defesa amplamente utilizada e chancelada, por reprodução, no jornalismo).
Como essa formulação, chega-se a uma solução dialética que consideramos de profundidade: o conceito de forma social escravista contém o que é estrutura, o que convoca pelas sobrevivências do racismo; o conceito de estrutura contém o que é forma e, por isso mesmo, não se restringe ao que está materializado (discursos e leis).


Jairo Ferreira é professor no POSCOM-UFSM e pesquisador do CNPq. Integra o Quilombo Epistemológico e Catálogo Afro RS. Lida também com pesquisas em midiatização e processos sociais.

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