Ensaio

Porto Alegre nas memórias da sociabilidade em torno de cinemas: terceira sessão

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Porto Alegre nas memórias da sociabilidade em torno de cinemas: terceira sessão

Com o nascimento do filho e do sobrinho, dois meninos com idade próxima, veio a fase de levar as crianças ao cinema. Novamente mudaram as salas de exibição, e as redes de sociabilidade. Talvez se possa dizer, mais precisamente, que já não era ir ao cinema, era ir ao shopping. E dentro dele, ir ao cinema. Já quase não havia cinemas de rua em Porto Alegre. Em alguns momentos era levar crianças para lanchar, em uma sala onde, casualmente, estava passando um desenho animado. Era impossível entrar no cinema sem comprar pipoca, algo para beber e algum doce. Na época isso era uma novidade. Para leitores jovens parece que sempre foi assim, mas não foi. O mais interessante é que boa parte das vezes eu estava com filho, sobrinho e os avós, no caso meu pai e minha mãe, que logo aderiram a este costume, e insistiam em comprar comida e bebida e levar lá para dentro da sala. Parece que havia neles um desejo reprimido, após décadas em que haviam permanecido calados e estáticos em salas de cinema. Agora, com a cumplicidade dos netos, queriam o direito de comer pipoca lá dentro e até mesmo de comentar cenas dos desenhos. 

Minha mãe, com seu espírito prático, logo aderiu às bandejas em que se podia encaixar um copo de refrigerante e o pacote de pipocas, havendo espaço para o guardanapo e o sanduíche e a batata frita, tudo colocado sobre as pernas. Terminada a sessão, ela não queria descartar no lixo a bandeja, queria levar para casa e usar na organização do lanche das crianças. O que criava outra discussão dentro do cinema, ela insistindo com as crianças para que comessem com cuidado, para não sujar a bandeja, enquanto o filme acontecia. Tudo isso alimentado pelo fato de que, embora tendo aderido ao costume de comer no cinema com as crianças, ela achava os preços absurdos, então levar a bandeja para casa era uma estratégia de economizar em algum ponto. E uma velha regra que sempre havia vigorado na minha família, aquela de alimentar as crianças antes dos compromissos – seja para não pedirem comida na casa dos outros, envergonhando a família; seja para não quererem comprar comida na rua, porque era cara; seja para não incomodarem de fome em lugares públicos, criando situações embaraçosas para os pais –, essa regra foi derrubada. Para quem, como eu, havia frequentado o Cine Guion do Shopping da Olaria, na Lima e Silva, onde ao comprar um pacotinho de balas estas eram colocadas em um saquinho plástico que não fazia barulho ao manusear, para não perturbar os demais, foi um choque tudo isso. Até hoje não tenho o costume de comer em cinema. E sinto certo nojo de colocar os braços no encosto da poltrona, percebendo que muitas mãos vão da gordura da pipoca para o estofado do apoio, e dali para o mundo, e não desejo ser o vetor dessa contaminação.

A sociabilidade em torno dos cinemas ganhou então outros percursos: ir ao shopping, ir ao cinema, dali na piscina de bolinhas, dali na praça da alimentação, dali comprar algo nas lojas, fosse uma roupa, um brinquedo, um material escolar. E para quem acha que que depois de um desenho animado vamos debater com as crianças acerca do enredo (eu achava que isso acontecia, com a minha eterna mania de que em todos os momentos se pode ter estratégias educativas em ação), aviso que o que mais ocorre é sair na busca de algum brinquedo diretamente anunciado ou sugerido no próprio filme. 

Assim vimos Rei Leão em desenho e depois acabamos por comprar uma pelúcia do Simba vendida logo ali no shopping mesmo. Vimos Aladdin em reprise para, alguns dias depois, comprar uma lâmpada mágica em uma loja de 1,99, que se iluminava ao toque, mas cuja potência de iluminação se esgotou em poucos dias. A Fuga das Galinhas foi um sucesso imenso, e logo fomos comprar massinha de modelar para dar conta de fazer os personagens, animados a partir de massinha. Com Babe, O Porquinho Atrapalhado (também em reprise) saímos do cinema direto para comprar um kit com todos os animais que aparecem na película (cães, ovelhas, patos, porcos e outros), feitos em plástico mole. Sinbad, A Lenda dos Sete Mares nos levou a vasculhar lojas de brinquedos na busca de uma espada em forma de cimitarra. 

Ao saírem de Procurando Nemo, as crianças já estavam aos gritos querendo os peixes ali mostrados e até mesmo um aquário. No que foram auxiliadas, algumas semanas depois, quando as escolas dos dois, estimuladas pelo sucesso do desenho, criaram projetos pedagógicos para estudo dos peixes, solicitando aos pais a compra de vários materiais relativos ao tema, inclusive sugerindo a aquisição de aquários. Mas foi a série Toy Story, em suas três películas, que ameaçou arruinar o orçamento familiar, pois, além de ser dirigida em particular a meninos – o que é o meu caso familiar –, nela temos alguns personagens, como o Xerife Woody e Buzz Lightyear, e uma infindável lista de brinquedos, como cão com mola, tiranossauro, cofrinho de porco, jogos de armar, bonecas, soldadinhos. Caso parecido aconteceu com Monstros S.A., no qual aparece uma galeria de monstros, todos eles vendidos em pelúcia ou plástico, bem como em figurinhas. E aprendemos que o ideal é sentar com as crianças não muito longe da saída para os banheiros, e não muito perto da tela grande, demanda por vezes difícil de equacionar.

Os incômodos em torno do que se poderia chamar a linha ideológica dos desenhos animados também apareceram desde cedo. Começo pelo caso mais grave, o filme Anastasia, em português Anastácia (1997). As cenas iniciais, que são belíssimas, visualmente falando, dizem de personagens que viviam em uma época de sonho, de elegantes palácios, de festas deslumbrantes, no ano de 1916, quando Nicolau era o Czar da Rússia Imperial. Um baile celebrava o tricentenário do reinado da família Romanoff. Tudo era alegria e afeto, particularmente entre a jovem princesa e sua avó. Súbito, uma nuvem negra – palavras ditas textualmente no filme – cai sobre a festa, na figura de Rasputin, que amaldiçoa a todos, movido pelo puro ódio. Em seguida, se mostram populações pobres em rebelião, derrubando estátuas, quebrando portões e palácios e destruindo este regime de paz e alegria. O território russo é coberto por uma nuvem de poeira negra. A condenação à Revolução Russa de 1917 é de tal modo explícita que não deixa margem a dúvidas. E logo aos primeiros minutos do filme. 

Fiquei tão incomodado que tentei retirar as crianças do cinema de imediato, numa manobra inútil que só gerou tumulto na sala e não teve êxito. Nem vou narrar o restante do enredo, com servos à beira da fome que, de modo voluntário, ajudam nobres a continuarem sendo nobres e lhes explorarem, com o filme valorizando tais atos de lealdade. Há uma conexão entre a figura de Rasputin e a Revolução Russa de 1917 que, além de completamente equivocada do ponto de vista histórico, situa as classes populares como marionetes de feiticeiros, e destruidoras de um reino de felicidade. Saí do cinema angustiado, no temor de que o filme tivesse feito estragos na cabeça dos guris. Adotei várias estratégias pedagógicas para fazer com que falassem do enredo, mas eles só queriam ir para a enorme loja de brinquedos. Me dei conta do quão fácil é identificar pedagogias culturais nos filmes, e do quão difícil é construir estratégias de abordagem delas.

Outro caso de tensão foi em torno do personagem Scar – Oscar na versão em português – do filme O Rei Leão. Primeiro, há que se dizer que O Rei Leão foi visto inúmeras vezes, no cinema e depois em vídeo. É interessante como as crianças, mesmo já sabendo de todo o desenrolar da história, querem assistir novamente. Quando eu perguntava o que ia acontecer na cena seguinte, eles diziam acertadamente o que era, e isso não diminuía o interesse. Se eu afirmava que ia acontecer algo que estava em desacordo com o filme, eles explicavam que não era assim, e seguiam assistindo sem se perturbar. O personagem Scar é um tio malvado, solteiro, ardiloso e preguiçoso, que deseja roubar o trono do pai de Simba, Mufasa, e do próprio Simba por extensão. Seus modos de falar, de conspirar, de se aproximar de Simba insistem em um tradicional clichê da Disney, em que o vilão parece ser portador de uma sexualidade desviante, no caso, de ser gay. Uma possível aliança de Scar com as hienas também colabora para essa versão, visto serem as hienas animais situados no interior de uma histórica polêmica, por conta de que machos e fêmeas têm pênis, ou órgãos que se aproximam disso, visualmente falando. Scar aparece como portador de uma sexualidade ambígua, que logo fica associada a seu caráter corrompido e maléfico. Novamente foi necessário imaginar estratégias para debater o tema após o filme.

Para que se tenha uma ideia de como o debate ideológico anda por caminhos surpreendentes, relato o caso de quando, com os dois guris já um pouco maiores, fomos ver Super Size Me (2004), que na versão em português se chamou A Dieta do Palhaço. O cartaz do filme logo atraiu a atenção, mostrando o personagem principal com a boca entupida de batatas fritas, cena que não era incomum entre os guris. É um documentário, que narra experiência de um mês em que um rapaz come apenas em lanchonetes do McDonald’s. Algumas cenas atraíram muito a atenção dos guris, particularmente quando a namorada do rapaz diz que ele está fedendo, depois de tantos dias comendo só as comidas do McDonald’s, e se recusa a dormir com ele. E quando ele percebe que não consegue mais ter tesão no sexo. As cenas dele comendo nas lanchonetes, e das visitas ao médico, também foram objeto de muita diversão. Ao sair do cinema, fomos a uma feira de artesanato, e lá compramos botons com o conhecido símbolo dos arcos dourados do McDonald’s, e uma tarja vermelha por cima, indicando proibição. Mais alguns dias, ainda portando os botons, me surpreendo com os dois querendo ir comer no McDonald’s. Questionei o pedido, tendo em vista o filme, e apontando os botons, e recebi a resposta “nós vamos comer protestando”.

Em termos de frequência a salas de cinema fora de shopping, destaco nossas constantes idas ao AeroGuion, inaugurado em novembro de 2004, e o primeiro cinema de aeroporto no Brasil. Ir ao cinema lá, passear no aeroporto, ver os aviões, deixar o carro em um andar elevado do estacionamento circular, de onde se podia ver a pista de pousos e decolagens, e depois parar na cabeceira da pista, e levantar as crianças quando um avião pousava, foram programas frequentes. Paulatinamente, o aeroporto se transformou em um shopping também. Por fim, destaco a experiência de alguns filmes, em alguns cinemas, onde a atração era o som, nos cercando por todo lado, nos envolvendo em batalhas, em corridas de carro, em cenas de tempestade em alto mar, que deixavam todo mundo eletrizado.

Esta cronologia segue no próximo artigo destas sessões de memória cinematográfica em Porto Alegre.

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